O homem era tão importante que o meu chefe - sobrinho do Presidente da República de então, minucioso em questões de protocolo e precedências - se deu ao trabalho de, pessoalmente, o ir esperar ao aeroporto de Amsterdam às oito da manhã, à chegada do avião do Rio de Janeiro.
No Amstel Hotel, onde lhe tínhamos reservado a melhor suite, exigimos garantias de que haveria em permanência meia dúzia de garrafas do melhor champanhe, outras tantas do melhor uísque, gelo suficiente, flores, sabonete de alfazema e a sua água de colónia favorita. Eu próprio me fora certificar à última hora de que tudo estava em ordem, e no aeroporto, onde cheguei quando já eles se abraçavam, pude sossegar com um gesto discreto as ânsias do chefe.
Mau grado o seu poderio de presidente-director-geral de um sem número de empresas estatais, particulares, mistas e outras, o personagem não impressionava: baixote, magrote, cabelos grisalhos, bigodinho fino de amador de tango, tinha ainda um falar mole que subitamente disparava em falsetes. Depois de se informar de que estava de facto pronto o gigantesco navio que um estaleiro holandês construíra para uma das suas várias companhias, disse-se impressionado com a planura da Holanda, embora pondo dúvidas de que a água realmente se encontrasse a um nível mais baixo que o do solo. Os jornalistas escreviam o que lhes vinha à cabeça, pois não era?
Gracejando assim, e dando-lhe razão, chegámos ao hotel. Ele aprovou o luxo da suite, apreciou a marca e a disposição das garrafas, cheirou o perfume com um automatismo ritual, bebeu connosco o brinde da amizade, e depois de uma vista de olhos ao rio Amstel - "Belo canal" - disse que não se sentia cansado e lhe parecia boa altura de visitar a cidade.
O chefe, esse, invocando de imediato um quimérico excesso de trabalho, e usando da capacidade que os chefes têm de delegar maçadas, destacou-me logo ali para guia, recomendando que eu não esquecesse os museus e "os tais canais das mulheres, famosos em todo o mundo."
Visitámos os museus, os canais, os antiquários, a praça do Dam, a Kalverstraat - que nesse tempo, 1957, era rua chique - e a meio da tarde voltámos ao hotel. Foi então que no momento em que me despedia o vi deitar as mãos ao peito e com um estertor cair desmaiado.
A reacção do pessoal foi fulgurante: mesmo antes de eu próprio ter recuperado a calma já o tinham transportado para a suite, deitado sobre a cama e chamado um médico, que constatou tratar-se apenas dum extremo cansaço. E porque só eu falava a língua do homem, e ele, de momento, também não fazia mais que produzir sons incoerentes e rebolar os olhos, foi-me recomendado mantê-lo na cama os dias seguintes, moderar-lhe a bebida, obrigá-lo a tomar uns comprimidos que já alguém tinha ido buscar à farmácia.
E assim, de funcionário e guia, me vi transformado em enfermeiro e guardião de um neurótico que recusava aceitar a sua debilidade, mas cujas pernas lhe não permitiam mais que arrastar-se até ao quarto de banho; depois, de gatas e aos ais, voltava à cama, suspirando que estava desgraçado. Morrer por morrer, preferia voltar ao seu Brasil natal. A minha obrigação era providenciar transporte imediato, chegar-lhe a garrafa de uísque e partilhar com ele a opinião da vasta estupidez dos médicos estrangeiros.
- Fosse médico brasileiro, o cara cravava uma injecção ou duas na minha bunda, ficava fino. Agora assim!
Três dias depois ainda as pernas não funcionavam como devido, começou a tomá-lo a preocupação de que o navio seria lançado à água sem a sua presença. Realmente tudo estava preparado para o sábado seguinte e à boa e pontual maneira holandesa, com presidente-director-geral ou sem ele, as autoridades chegariam a horas, a banda tocaria, a princesa de serviço lançaria contra a proa a tradicional garrafa de champanhe.
Na sexta-feira sentiu algumas melhoras, vestiu-se, quis descer ao bar, mas logo ao fim do corredor as pernas cederam. E comigo a ampará-lo dum lado, a empregada do andar a segurá-lo do outro, levámo-lo de volta para a cama, onde ele se deitou contra vontade, rogando pragas, afiançando que a incompetência da medicina holandesa juntamente com a humidade do país lhe seriam fatais:
- Não pode ser, José! Um cara como eu, que nunca teve a mais pequenina coisa! Chego nesta merda de país e fico logo assim! Com médico besta que nem sabe receitar! Hoje é sexta?
- Certo.
- Me chama o Jorge.
Jorge, o chefe, tinha aparecido algumas vezes de corrida, pretextando o monte de trabalho urgente, mas nessa tarde encerraram-se ambos em conferência. Eu que esperasse no bar. Horas mais tarde, um recado: podia ir-me embora. Ao chegar a casa outro recado: voltasse imediatamente ao hotel.
- José, nós estamos com um problema. Não é grande, mas é problema.
No dia seguinte, num estaleiro dos arredores de Rotterdam, um grupo de mulheres elegantes, diplomatas, industriais e dignitários, aplaudiu quando a jovem princesa atirou a garrafa contra o casco e o enorme navio deslisou para a água. Aplaudi também, discretamente retirado como convinha a um funcionário de categoria H, embora ainda dentro do recinto que, marcado por fitas vermelhas e patrulhado por alguns polícias, mantinha a certa distância os operários e os basbaques.
Jorge, homem social, perito em relações e amizades, andava numa roda-viva de brindes, abraços, gritos de surpresa, vénias de respeito. Competente no jogo, ninguém terá dado conta da maneira como se acercou para travar o braço do proprietário do estaleiro e, com um franzir dos olhos, intimou a minha presença.
- Ele está ao corrente e trata do caso - explicou o chefe em forma de apresentação, correndo a beijar uma matrona.
O magnata sorriu, eu sorri. Disse-me que esperasse, eu esperei. A princesa partiu, a gente foi diminuindo, o embaixador despediu-se, o chefe acompanhou-o, e quando pouco mais restava que o grupo de impenitentes dos que sempre ficam enquanto houver acepipes e bebida, o construtor de navios acenou-me para que o seguisse.
Acompanhados pelo ex-almirante que lhe servia de adjunto, subimos a escada de ferro que levava ao seu escritório. Na força dos cinquenta anos, pequeno de estatura, embrulhado num sobretudo escuro, cachecol branco e chapéu Homburg, o homem, mau grado uma voz de falsete como a do brasileiro, exsudava energia e autoridade.
De um molho de chaves escolheu a do cofre e marcou uma combinação de números, deixando ao ex-almirante o trabalho de abrir a porta, retirar de dentro uma maleta de couro e colocar esta sobre a mesa a que nos sentámos.
A maleta foi esvaziada, conferimos os maços de notas, eles apertaram-me a mão e, em menos de meia hora, tomado por um grande sentimento de irrealidade, rodava eu a caminho do Amstel Hotel, junto de um chofer macambúzio, com um milhão de dólares sobre os joelhos.
O carro do chefe seguia a pouca distância, razoável cautela contra a eventualidade de me dar para fugir com uma fortuna de que não fora preciso assinar recibo e cujo destinatário ninguém quisera nomear.
Meses mais tarde no escritório, o chefe ao telefone, gritando para que a voz transpusesse a distância intercontinental:
- Quanto você diz? Um milhão? Sim, também ouvi, mas a gente só pode encolher os ombros, não é? Como vai desmentir boato? Além disso é sabido, corrupção aqui na Holanda nunca teve. E no Brasil, hoje em dia, com a política de meu tio presidente, também já não há. Exacto. Beijão para a Luísa. Me recomenda a ela e aos meninos. Ciao!
E encarando-me, enquanto pousava o telefone com um gesto de enfado:
- Imagina que andam espalhando no Rio que eu e o nosso amigo que esteve aí recebemos um milhão de dólares pela compra do navio! Que o preço foi aumentado artificialmente. Como se isso fosse possível num país destes, com gente séria e tudo controlado!