Não descubro volta a dar-lhe: falo com defuntos. Oiço vozes, tenho na cabeça todo um cinema onde repassam cenas minhas e da vida alheia, guiões que imaginei mas não deram filme, retalhos de querelas, momentos de euforia, tombos, meios desastres, benesses de última hora, precipícios evitados, outros onde ia a cair quando o anjo-da-guarda abriu as asas.
Trocando isto em miúdos, quer dizer que ando meio aborrecido e distanciado do mundo que me deveria ocupar, o dos vivos
É mau sinal, mas não lhe vejo remédio. Sei que abunda a inteligência, a beleza, a solidariedade. Sei que há lugares de eterna Primavera e gente que, dia após dia, tem razões de sorrir e cantar. Gente que reza nos templos, ama o semelhante e os animais, respeita os velhos, acode aos necessitados.
Assim é, mas longe, que aqui em redor pouco disso distingo, ou prefiro não ver. Fecho-me na solidão e chamo os defuntos, querendo saber deles se a viagem é longa, se chegando ao destino se prestam contas, se nos arrumam por tamanho, idade, raça ou nação, se de facto há por lá anjos a tocar harpas e trombetas.