Acerca da minha família e do largo do Monte (dos) Judeus em Vila Nova de Gaia, lugar do meu nascimento, já escrevi com detalhe em Ernestina (Quetzal Editores – 2009), baste referir aqui que não era exemplar das condições sociais da época, as décadas de 30 e 40 do século passado, pois em escassas centenas de metros quadrados encerrava um microcosmos que ia da miséria mais abjecta ao luxo dos muito ricos ingleses do Vinho do Porto.
Num extremo estava a Cavalinha, mulher de que nunca soube o nome, só a alcunha, megera de físico masculino e cabeleira loira, provavelmente nascida do cruzamento com algum embarcadiço nórdico, o que poderia também explicar a sua capacidade de beber e a imprevisível mudança de humor, pois sem razão que se adivinhasse, passava do riso para as lágrimas ou vice-versa.
Os três filhos, mais ou menos da minha idade, todos de pai incógnito, meus companheiros na escola e nas brincadeiras, nunca sabiam se o berro era anúncio de carinho ou promessa de bofetada, e por isso, como os cachorros de mau dono, acudiam sem pressa ao chamamento, prontos a esquivar-se à porrada e quase sempre certos que, com razão ou sem ela, era o que os esperava.
Comiam todos na soleira da porta, os pratos nos joelhos, a Cavalinha alerta quando um deles olhava de lado, a querer surripiar-lhe um naco, mandando pronta um tabefe à maneira de prevenção.
Passava-se aquilo na viela das traseiras, eu pendurado na janela, observando sem noção de valores ou diferenças, apenas curiosidade, e o vago sentimento de que, porque não comia com as mãos nem na soleira, mas à mesa, com garfo, faca, e guardanapo, a minha vida de filho único de gente remediada, talvez fosse melhor, mas era sem liberdade e sem aventura.
Que sejam muitas as recordações que guardo da Cavalinha, não é de estranhar, pois à sua maneira era personagem de excepção, do tipo quem não deve não teme, e de uma valentia libertária, indiferente às barreiras sociais ou às ameaças da autoridade.
Às suas horas era peixeira, indo à Afurada as vezes precisas para encher a canastra de sardinha ou carapau, que peixe fino raro se vendia por ali, mas com o mesmo entusiasmo fazia carretos, partia lenha, lavava roupa, ia buscar encomendas à estação ou, garrafa em punho, embebedava-se sentada nos degraus do largo, alternando os goles com risadas histéricas e descargas de manguitos, espectáculo que de tão frequente entrara no folclore e a ninguém incomodava.
No muito que dela ainda lembro, destaca-se o que equivaleu a uma verdadeira e importante lição de anatomia. De cada vez que com uma ou outra vizinha se metia ao barulho, eram socos, bofetadas, arranhões, até que a bufar do esforço entravam no corpo-a-corpo e a arrancar-se mãos-cheias de cabelos. Finalmente chegava o momento em que alguém as apartava, mas então a Cavalinha, que só perdia quando a bebedeira lhe diminuía a força, não imitava o pugilista que ergue o punho vitorioso, mas punha-se de costas para a derrotada e, curvando-se, arrepanhava as saias, pondo à mostra um colossal traseiro.
Embora repetido, aquilo exercia sobre mim um estranho fascínio, não só pela revelação das partes femininas e a estranheza que me causavam, mas ainda pelo simbolismo, já que nesse particular, julgando-se ofendida ou com a razão do seu lado, a Cavalinha não respeitava nem temia guarda, capataz, senhorio ou madama, e ora pela frente, ora pela traseira, conforme a veneta e o grau do insulto, lá vinha ela com a exibição.
Faziam-no também outras, mas sem o mesmo aplomb, que parecia vir-lhe, tanto da força física, como de um inato espírito de revolta, contra o destino que a tinha feito nascer no mais baixo da escala social e sem esperança de salvação.
Do resto da gente que enchia a viela ainda lembro alguns rostos, alguns episódios, um ou outra figura, o pitoresco das bebedeiras e das zaragatas – mais barulho do que pancadaria - mas sobretudo da iniciação ao vernáculo, para mim sobremodo atraente pela força de expressão, e o mistério da sua clandestinidade, pois por muito que procurasse nunca o lia nos livros ou no jornal, nem o encontrava no dicionário.