segunda-feira, novembro 29

Mr Bean em Vila Real


 

Ao acaso de uma conversa ou recordação, um aborrecimento, uma inesperada sacanice ou um comportamento que o traz à memória, e lá vem a cena de Novembro de 2008, que revejo como num écrã. 

 

Vila Real, ontem de manhã. Na espaçosa sala dos pequenos almoços do hotel Miracorgo estão à volta de cento e tal idosos. Uns enfileiram diante da máquina de café, outros assaltam o que há para comer, este e aquele hesita entre fruta e iogurte, lê-se nos olhos o medo do colesterol, da tensão, dos diabetes, do acv.

Observo sem malícia o comportamento do meu semelhante. Sorrio de uma vestida como quem vai em expedição aos Andes. Rio doutra com fatiota de toureiro. Um ancião empurra o vizinho que lhe quer tirar a vez diante do queijo. Alguém grita que não há xícaras. Uma octogenária pergunta se o motorista se chama Fonseca. Uma empregada, cercada de mãos enrugadas e gananciosas, defende a custo o tabuleiro com salsichas.

Entra Mister Bean, apertando nos braços o bebé Bean. Dois passos atrás, Mrs. Bean. Gorducha, óculos, fato de treino azul, mau modo. Ele, incrivelmente parecido com o actor, deve ter como ela uns trinta anos, veste uma espécie de camisola que deixa à mostra uma larga faixa de ventre gordo e peludo. As caretas que faz ao bebé não devem nada às de Rowan Atkinson: esbugalha os olhos, mexe as orelhas, estica a língua, produz grunhidos, franze o nariz, revira os lábios... Com ar ausente, silenciosa, Mrs. Bean ataca um prato cheio, bebe o café em goles demorados. Mr. Bean deposita o bebé na cadeira, levanta-se, tira dum saco uma câmara de vídeo. Filma a mesa, filma o bebé de frente, de lado, em close-up, filma o dorso de Mrs. Bean, filma a sala, os anciãos, as empregadas, a máquina de café, filma-me a mim, uma ou outra mesa vazia, as paredes, o tecto, e finalmente sai para o terraço a filmar o Corgo.

Volta. Senta-se cabisbaixo, parece esquecido do bebé que, inquieto, ele próprio começa a fazer caretas. Mrs. Bean bebe um último gole de café e pega na câmara. Filma a mesa, filma o bebé de frente, de lado, em close-up, filma a cabeça que Mr. Bean apoia agora nas mãos, filma a sala, os anciãos, as empregadas, a máquina de café, filma-me a mim, as paredes, o tecto, e sai para o terraço a filmar o Corgo.

Mr. Bean despertou e enfileira quatro pães. Corta-os em metades, barra-os de manteiga, entremeia-os de sucessivas fatias de queijo e fiambre, fiambre e queijo. Embrulha os pães em guardanapos de papel, amassa-os para diminuir o volume, fá-los desaparecer no saco.

Mrs. Bean regressa. Pega ela no saco e na cadeira, ele no bebé, e saem como estiveram o tempo todo: sem trocar palavra.

 

Quando lá em casa mostrarem o vídeo apareço eu como Mr. Bean, impassível, me filmou: saudando-o com o dedo médio espetado no ar.