sexta-feira, outubro 29

Bingo

 

Mesmo sabendo que me engano, continuo a acreditar que só as histórias do passado possuem os ingredientes necessários ao sonho. As do presente parecem quase sempre carecer de elementos essenciais. E sem nostalgia, nem a espessa névoa que separa a vivência das gerações, elas têm aos meus olhos a secura desapaixonada que caracteriza os relatos dos jornais. Pode o seu enredo ser interessante, mas como que lhes falta a «alma». Por isso, para sonhar, recordo de vez em quando as histórias de antigamente, e é como se pudesse viajar no tempo.

Grande, de granito, com duas varandas de sacada, a casa do padre Francisco ocupava um lado inteiro do largo. Na freguesia de quase mil almas a igreja dava uma côngrua abastada, fora bons emolumentos em missas, festas, baptizados e enterros. Como o senhor abade, como lhe chamavam por deferência, além de ser rico de nascença estava ali há mais de cinquenta anos, dizia-se à boca-pequena que no cofre da sala, escondido por um cortinado, e tão grande que cabia lá uma pessoa em pé, tinha amontoado uma das maiores fortunas da província.

Pela criada e pela alcovitice das velhas, o padre conhecia os boatos. Incomodava-o também o saber que na taberna se especulava muitas vezes sobre as suas posses e que havia quem, toldado pelo vinho, quisesse apostar que um dia iria saber ao certo quanto ouro e quantas notas de conto ele tinha enterrado na parede.

 O padre Francisco não gostava daquilo. A sua fortuna era grande – «tinha para comer», dizia ele aos sobrinhos – mas amealhador e avarento por natureza, nunca lhe pareceria suficiente.

Com o correr do tempo, a ideia de que alguém se viesse a apoderar da chave que ele próprio cosera no forro da batina, e abrisse o cofre para o roubar, transtornara-lhe por inteiro a cabeça. Assim havia anos que à noite, sem que ninguém o suspeitasse, se despedia da criada como se se fosse deitar, trancava-se por dentro na sala e despendurando a caçadeira sentava-se no cadeirão à espera dos ladrões. Provavelmente os irmãos Gato, trolhas de ofício, mas mais gatunos que outra coisa. Por volta das cinco da manhã começava-se a ouvir o restolho da gente que saía para os campos e só então, considerando o perigo passado, se metia na cama.  Às sete estava diante do altar para a primeira missa.

Já quase nos noventa, no dia da festa de uma freguesia vizinha, ao fim do jantar, com a serenidade de quem adormece, entregou a alma ao Criador. Os sobrinhos abriram o cofre e entreolharam-se preocupados, porque o recheio, umas dezenas de contos, um saquinho com pequenas moedas de ouro e três cordões, não era exactamente o que esperavam, nem o que o tio lhes tinha dado a entender.

O povo, invejoso e descontente, julgando que os herdeiros tinham encontrado o eldorado, resmungou que bem mereciam uma carga de pau, pois ao menos poderiam fazer algumas benfeitorias à aldeia.

Com o passar dos anos tudo esqueceu e o casarão do padre Francisco, desabitado, foi ruindo. A garotada quebrou-lhe as vidraças à pedrada, a chuva apodreceu-lhe as traves, o telhado desmoronou, os ciganos tinham-lhe cortado as portas à machada para lenha. Quando os irmãos Gato, agora empreiteiros, ofereceram comprá-la, avisaram logo os sobrinhos que não pedissem muito. Na sua opinião ia custar tanto o deitar as paredes abaixo, tirar o lixo e limpar o assento, que tudo o que pagassem era dinheiro mal empregue. Mas por fim lá se devem ter posto de acordo, porque um dia os Gato trouxeram o Caterpillar e começaram a demolir o prédio.

O resto soube-se por indiscrições, mas ninguém o pôde comprovar, e quando os sobrinhos quiseram levar os empreiteiros para tribunal, o advogado disse-lhes que seria perder tempo e dinheiro.

-Com medo que o roubassem o padre tinha escavado um buraco na parede e aí escondera a fortuna numa arca de ferro que o tractor pôs a descoberto logo à primeira pancada. Houve quem ouvisse o motorista gritar «Bingo!», mas contava-se que os patrões o chamaram de lado e ele depois, no posto da Guarda, jurou que nunca tinha gritado semelhante coisa, não sabia o que era, não tinha visto arca nenhuma.