“Pequenino e barrigudo, sempre em movimento, em viagens, em telefonemas, vestido a primor, Sousa inspirava confiança, ganhara uma reputação de serviçal e enriquecera a emprestar sobre penhores.
O que então havia em Lisboa de fidalgos habituara-se a ir-lhe ao escritório desfazer-se discretamente de acções, jóias e propriedades, para acudir a aflições de fim de mês, letras protestadas, despesas com bodas e amantes, apertos de contas velhas. A sua amizade com o barão nascera quando, por causa de uma enrascadela com uma menor, precisara de dinheiro para calar a mãe da rapariga e lhe tinha feito a hipoteca de um prediozito de três andares na Rua do Salitre. Para evitar o escândalo tivera de untar muita mão, e o Sousa, honra se lhe faça, fora útil, mexera relações, conseguiu abafar a coisa quando, por assim dizer, já estava em andamento no tribunal.
Simpatizaram, frequentaram-se, passaram a jantar no Tavares, no Grémio Literário. Foram a Madrid e Barcelona, havia o plano de realizarem uma grande viagem pela Europa e de mais tarde irem aos Estados Unidos. Depois tinha havido uma zanga entre ambos, uns anéis antigos que o barão lhe dera a empenhar e ele, sem aviso nem licença, vendera para saldar os juros atrasados doutra hipoteca.
Quando o soube correu ao escritório fora de si, desatou a insultá-lo:
– O senhor Sousa é um agiota, um judeuzinho sebento, um velhaco! Ouviu? Um velhaco!
– Senhor barão…
– Tenho amigos! O senhor vai ver! Tenho gente na minha família que assim que… Mal eu… E provas! Com provas!
– Senhor barão, por favor…
– Tenho provas! Mais! Tenho o direito por mim!
– Eu faço o possível por não prejudicar ninguém, senhor barão. Sempre que posso acudir, acudo. É a minha divisa. Mas também tenho família, obrigações, tenho as despesas, o pessoal. Às vezes sou obrigado a ser duro. Contra vontade, com muita pena.
– Desgraço-o! É eu abrir a boca e os meus amigos!… Ainda lhe digo outra coisa…
Sousa interrompeu-o:
– Amigos? Que amigos, senhor barão? – e repentinamente violento, sarcástico: – Provas? Provas de quê? Das garotas que tem abandalhado? Das porcarias? Diga, se faz favor, provas de quê, meu caro senhor? De não pagar o que deve a tempo e horas? De passar a vida a intrujar?
Incrédulo e desnorteado, sem ar – nunca ninguém o atacara assim – o barão procurava a porta aos tropeções, tentando debalde escapar àquele dedo que o apontava.
Esbarrou contra uma estante, depois contra a mesinha baixa, e por fim, lívido, a tremer, encostou-se à parede à espera do golpe de misericórdia.
Gentilmente, mas com firmeza, Sousa veio agarrá-lo pelo braço, puxou o sofá, obrigou-o a sentar-se. E tirando os papéis da gaveta fez-lhe contas, mostrou recibos, explicou, deu-lhe a boa nova: os anéis, infelizmente, tinha sido obrigado a vendê-los, porque o banco não ia esperar mais tempo. Mas vendera bem, tão bem que, paga a papelada e os emolumentos, satisfeitos os juros, ainda havia saldo:
– E nada mau, senhor barão, nada mau.
Eram quarenta contos e pico que naquele momento lhe faziam jeito e o prestamista contou de um maço que tirara do cofre, a gracejar se os queria em notas de vinte.
Com o sorriso o ambiente desanuviou e Sousa, pelo telefone, pediu à secretária que trouxesse gelo e a garrafinha de uísque.
Mais tarde, na rua, em vez de se despedirem acabaram por ir jantar ao Gambrinus, ambos cheios de desculpas.
– São coisas do diabo, Sousa. Compreenda. Às vezes uma pessoa… Há ocasiões… A gente depois arrepende-se, mas na hora…
– Águas passadas, senhor barão. São coisas do diabo, realmente. Eu próprio devo confessar, reconheço que da minha parte…
– Sousa, confesso-o com toda a franqueza: excedi-me. Os amigos… Sempre o considerei e continuo a considerar um amigo. Tenho dado provas. No correr do jantar já o incidente parecia remoto. Falaram de Badajoz, onde no dia antes houvera uma magnífica tourada. Falaram do Parque Mayer e da revista do Variedades, onde a Manuela, a rapariga que agora tinha por conta era corista.”
in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal