“Provaram de
novo o vinho verde. Modernaço, chamou-lhe Jorge, achando que tinha perdido a
originalidade, não picava nem arranhava:
— Bebe-se. Falta-lhe carácter, mas há pior.
Sarah foi franca. Não era como o primeiro que tinha bebido, mas preferia o
maduro tinto.
O doutor Castro
aceitou a derrota com bom humor, dizendo, malicioso, que ia desarrolhar umas
garrafas do Douro, das que guardava especialmente para os paladares delicados.
Uma inglesa de boa classe não se deixa chocar nem perde o aprumo. Mas nas veias
de Sarah corria também sangue meridional, de modo que, em vez de entesar e
temer, não parava de
sorrir à vista do amontoar caótico.
Ele eram
viandas e entradas, os bolinhos de bacalhau postos na mesa de par com vitela
assada, os filetes de pescada, a salada de polvo, a alface, as batatas alouradas,
o frango de cabidela, as lheiras, a chouriça grelhada, e mais que fingia não
distinguir, receosa de um passo em falso.
As duas mulheres serviam com o entusiasmo de quem farta um cabido e, reparando
no prato de Sarah, um filete, uma batata, folhas de alface, nem tempo lhe deram
de se opor, encheram-lho elas à sobreposse com nacos de tudo, no cimo metade de
uma alheira, «prà menina provar!».
Acudiu-lhe o anfitrião, dizendo que não reparasse, era a nossa moda. Comesse o
que quisesse, deixasse o resto, ela envergonhada de desconhecer o hábito,
perguntando-se como poderia
meter ali o garfo sem que o conjunto desmoronasse.
Vendo-a embaraçada, de novo lhe valeu o anfitrião, chegando um prato vazio e
pondo nele o que lhe parecia mais apetitoso.
Devia ser ritual doméstico, porque um instante antes das oito as duas mulheres
vieram inspeccionar se estava tudo a contento, encheram os copos, entregaram o
comando da televisão
ao doutor Castro, e foram sentar-se no extremo da sala.
— Vocês também gostam de ver as notícias — disse ele aos hóspedes à maneira de
explicação, ligando o aparelho.
Distraídos com as imagens raro falavam. As sobremesas, outro excesso, tinham
aparecido como por milagre.
De vez em quando o doutor Castro enfurecia-se, apontava o ecrã com um dedo
raivoso:
— A
pouca-vergonha! O descaro deste bandalho!
Um ministro, santimonial, untuoso, falando de progresso e da nova estrada que
abriria grandes perspectivas para o interior do país.
— Grandes perspectivas! Quando é que esta gente aprenderá a ter vergonha?
Irritado, apontava o garfo a Sarah:
— Estes nem sequer sabem ser máfia a sério. São uma máfia pelintra, uma súcia
de gordos bem penteados. E a chafurdar, menina! A chafurdar no mexerico, sempre
aos salamaleques. Assim que podem, rápidos no coice.
Sarah, cortês, parara de comer. Jorge sorria, intrigado com aquele doutor
Castro tão outro, nada do empresário e do advogado parco de falas e gestos que
tinha na recordação.
— Mas o senhor conhece-os, convive com eles.
— Convivo, meu rapaz, convivo. E ainda tenho de conviver, lá darei contas ao
Altíssimo. Mas estes são outros chacais. Tão esfomeados e brutos que nem a
aparência guardam.”
....
in MENTIRAS & DIAMANTES