Para Adriaan Morriën
Prezado senhor Morriën,
Com franqueza labroste um conhecido confessava-me que em tempos lera com
interesse os seus livros, mas por fim, já não se lembrava quando, tinha atirado
com eles.
Quem escreve acha-se por vezes exposto a esse género de desabafo em que, na
verdade, a má-criação leva a palma à estupidez. Falo-lhe deste caso porque eu
próprio devo confessar que, embora guarde algumas das suas obras, pouco mais
devo ter feito que folheá-las. O que tenho lido, sim, são aquelas impressões
que o senhor de vez em quando publica no jornal, e nas quais, incansável, nos
põe ao corrente dos êxtases que lhe causam as jovens belezas que cruzam o seu caminho.
Não sei se conhece o velho provérbio francês Tout passe, tout casse, tout
lasse, mas de verdade, depois de ter lido meia dúzia dos seus êxtases,
passei a fugir deles com uma pressa igual à com que antigamente, quando ainda vivia entre nós, o Diabo fugia da cruz.
Mas oiça. Meses atrás, em Ciudad Rodrigo, foi-me dado observar uma curiosa
iniciativa, tomada pelas autoridades locais no quadro do actual interesse pelas
questões da gerontologia: o festejo de um Carnaval da Terceira Idade.
Imagine quatro mil idosos vindos de toda a província de Salamanca, vestidos de
trajes carnavalescos, a desfilar na Plaza Mayor – «no sin dificultad»,
como escreveu no dia seguinte El Adelanto – com o intuito de ganharem um
dos prémios que o júri atribuiria à mais interessante «fantasia» individual, ao
par mais bem disfarçado, ao grupo mais humorístico, e assim por diante.
Na primeira categoria o prémio foi para um ancião que carregava um curioso
equipamento de campista. Houve igualmente prémios para dois velhotes
disfarçados de árabes, para um grupo de arlequins, para um grupo que encenava o
descobrimento da América e, finalmente, para um Matusalém vestido de pastor,
rodeado por duas dezenas de anciãs disfarçadas de ovelhas.
Foi de facto a desfaçatez da lubricidade do «pastor», que para gáudio do
público ia apalpando as carnes das «ovelhas» ou as empurrava pelo traseiro, que
fez com que eu, ao mesmo tempo que me espantava com o espectáculo, involuntariamente
me pusesse a pensar nos seus escritos. E nesse momento tomou-me um tão grande
remorso de por vezes ter escarnecido dos seus ingénuos e platónicos êxtases
que, tivesse eu o seu número, dali mesmo lhe teria telefonado as minhas desculpas.
As quais o senhor com certeza não compreenderia, pois de viva voz a explicação
seria inevitavelmente confusa.
Por isso optei por esta carta, e aproveito a ocasião para lhe desejar que
festeje com saúde e ânimo os seus oitenta anos e, ainda durante muitos, se
enleve «Standing at the corner, watching all the girls go by.»