Razões para pressas e descuidos todos temos, às vezes porque perdemos a cabeça, noutras por vaidade, ambição, desejo de continuar no palco, medo que nos esqueçam, ameaças dos concorrentes. É provável que isso aconteça em muitas profissões, mas para falar apenas do que conheço melhor, há entre os escritores alguns que temem que os julguem reformados ou gagás, e então descuidam-se, deitam a cautela às malvas e desatam a "produzir".
Estou a falar disto com alguma tristeza, não só porque ao longo da vida o constatei vezes demais, mas porque a semana passada li o romance dum colega estrangeiro cujo talento tenho em alta estima e por boa razão há muito pertence "aos eternos candidatos ao Nobel."
Ao redor da página trinta deu-me vontade de parar, mas por curiosidade e consideração levei a leitura até ao fim. Começar com o assassinato de um velho padre católico numa mansão protestante algures na Irlanda, já levaria a franzir as sobrancelhas, sobretudo se a casa estava cheia de gente e ninguém deu por nada. Mas que quem assassinou o pobre ancião ainda se desse o tempo e o trabalho de o castrar, era insistir demasiado nas sombras. Contudo não desisti, li as trezentas e trinta e seis páginaa. Assombrado, triste, de mau humor, perguntando-me como é ainda possível que no século XXI, com mais de cem anos de cinema e televisão, um escritor continue a escrever como no século XVIII, e em vez de sugerir detalhar tudo, desde os vasos, aos cortinados, às manchas de sangue no tapete, aos trejeitos dos personagens, dando ideia de que o leitor não tem imaginação e só entende se se lhe der a papinha feita.
Deus ajude este excelente colega, que tem muito talento, mas vaidade ou má sorte não é a primeira vez que dá uma no cravo outra na ferradura.