Para os que o desconhecem será aborrecido que eu não comece por revelar o motivo que levou Eça de Queirós a "matar o bei de Túnis", mas os que estão ao corrente do que aconteceu ao velho Mestre sabem que há ocasiões em que aquele que se vê entre a espada e a parede, involuntariamente descarrila.
Ao longo de quatro anos, e perto de trezentas historietas que aqui deixei, naquelas alturas em que a fantasia me faltou, infelizmente muitas, não tive outro remédio se não valer-me de casos e situações da vida alheia, mas sempre com o cuidado de tudo maquilhar, e de tal maneira que ninguém se iria reconhecer nos personagens da minha ficção.
Acontece agora que por motivos e circunstâncias diversas, algumas delas absurdas outras mesquinhas, há coisa de semanas luto com a incapacidade de alinhavar uma historieta que com princípio, meio e fim satisfaça o mínimo que de mim próprio exijo.
Tanto quanto posso ajuizar não é questão do entupimento cerebral a que em linguagem fina se chama writer's bloc, de preguiça também não, doença ainda menos, de modo que assim me vejo no que se assemelha a um daqueles corredores de negrume das horas de insónia, dos quais nunca descobrimos por que razão neles entramos, nem que misteriosa força nos ali prende.
Encontrava-me pois essa aflição, que ia aumentando desagradavelmente à medida que se aproximava o momento de entrega, quando ocorreu o que só explico como intervenção do sobrenatural, assim a modos que lá das alturas em que se encontra Eça de Queirós me soprasse ao ouvido, recordando a situação que o que levara a "matar" o bei de Túnis.
De facto, se seguisse o que o velho Mestre me soprou, em dois tempos teria a historieta pronta e arrumada, mas além de já não haver beis a que deitar a mão, o que hoje em dia funciona contra é que, mesmo tratando-se de fantasia, se corre o risco de ao pisar os calos de alguém sofrer dolorosas consequências.
De começo ainda me lembrei de que na falta do antigo governador tunisino, talvez pudesse fantasiar um personagem à semelhança de um dos ministros que hoje nos governam. Como ainda não chegou a Censura que daqui a nada nos fechará a boca e a imaginação, a brincadeira não teria consequências de maior. Todavia acho de melhor conselho começar já por não escrever o que penso, não dizer o que me vem à cabeça, menos ainda dar largas à fantasia, pôr-me a "matar" a torto e a direito, porque estou mais que certo que dos "beis" que hoje em nós mandam não ficava um para amostra.