É sorte que cabe a poucos o ter privado com uma pessoa excepcional, mas acontece também que há quem viva tão ensimesmado que não lhe sobra interesse para as qualidades alheias, vê-se sobretudo a si próprio, e no melhor dos casos considera os outros personagens secundários no palco da sua vaidade.
Faleceu em meados de Janeiro com a bela idade de cento e dois anos, fomos ao seu funeral, mas continuamos a ter dificuldade em falar dele no passado, o que dá medida da admiração que lhe tínhamos, e de como foi importante a sua amizade para o pequeno grupo que somos. Todos então já a entrar na velhice, sempre nos tratou por "rapazes", enquanto para nós, com um sentido antigo do respeito e da hierarquia, mesmo em pensamento ele era sempre o senhor Altino.
Casado cedo, pai de muitos filhos e avô de muitos netos, conhecemos-lhe duas paixões. Ambas avassaladoras, felizmente temperadas pela sua humildade e sentido de humor: o Comunismo e os automóveis FIAT, em particular o clássico Cinquecento, comprado em meados dos anos sessenta e de que cuidava com o desvelo de galinha-mãe de um só pintainho.
Paixões avassaladoras, de facto, mas também contraditórias, como tantas vezes acontece quando alguém é arrastado por sentimentos irreprimíveis. Discordarmos dele era uma coisa, outra era o senhor Altino continuar a ser comunista devotado aos ideais de Marx, o que nos merecia respeito e admirávamos como firmeza de carácter, e o mesmo valia para o seu sonho de que um dia a URSS renascesse grande e imperial como a tínhamos conhecido no tempo de Estaline.
O busílis estava em conciliar o ideal político com a paixão pelo seu Cinquecento, saído das fábrica dos Agnelli, a poderosa e ultraconservadora família italiana, tanto mais que aqui e ali se ouvia dizer que o fabrico em massa do baratucho Cinquecento fora combinada pelo Vaticano e os Agnelli, pois na posse de um carro que podiam pagar, os operários estariam mais inclinados a ir para a praia do que passarem horas aos gritos em comícios e manifestações.
O senhor Altino escutava, às vezes parecia forçar um sorriso, durante algum tempo julgámos que tivesse aceitado a teoria da conspiração entre a Igreja e os Agnelli, tanto mais que na Itália o Comunismo estava de facto a perder terreno. Não tínhamos, porém, imaginado que ele num almoço nos surpreendesse confessando que de facto houvera conspiração, mas "os camaradas italianos" logo no começo tinham reagido com certas medidas. Infelizmente não nos podia dizer quais.