Estamos a viver sem certezas nem segurança num tempo em que tudo são medos e aflições. Já não preparamos o dia de amanhã, este nosso hoje não se compara aos ontem, tudo são ameaças e bem diferentes das que dantes conhecíamos, não é só o nosso lar ou a nossa rua, a cidade, mas o mundo inteiro que vemos coberto de perigos e pessimismo.
O Acácio ficou desempregado dum dia para o outro, embora o pior talvez nem seja perder o ordenado, porque felizmente sempre foi cuidadoso, e com o que tem na Caixa ainda aguenta um tempo. O que o rói por dentro e lhe causa pesadelos é a brusquidão da mudança. Há mais de vinte anos servir no restaurante uns cinquenta almoços, quase outros tantos jantares, e de repente, num desleixo que se desconhecia, ficar de braços caídos, gastando horas a ver televisão ou deitado na cama a remoer. Já nem se pergunta como é que isto vai acabar, começa a sentir que se está a fazer nele um negrume de mau agouro, uma necessidade de vingança, sem que veja por quê ou contra quem.
Nunca voltou a passar pela rua onde fica o restaurante e deixou de ir ao café, as poucas vezes que sai é para o supermercado ou à farmácia, pois sofre mais da asma devido à obrigação da máscara.
Teria nove ou dez anos quando embirrou que não queria ir à missa, e se lho perguntarem dirá que não acredita em coisa nenhuma, o que não é a verdade inteira, porque desde a tarde em que foi despedido pega de vez em quando na estatueta de Santo António que a avó lhe deu quando era miúdo, e fica a encará-la como se dela esperasse resposta aos medos que o assaltam. Sabe por demais que isso não acontecerá, e se sorri da crendice é um sorriso amargo, porque se sente sem rumo e ao desamparo, descrente do preço que está a pagar pela independência que sempre ansiou e lhe faz ver agora o negrume dos dias de solidão.
Amodorrado do almoço tinha decidido não sair, mas num impulso foi fazer a barba, vestiu-se como se tivesse de ir para o trabalho e pôs a máscara, que logo tirou ao sair para a rua com uma brusquidão que era de rebeldia, mas também por sentir que sufocava.
O grupo na paragem olhou-o com um misto de desprezo e irritação, alguns diriam depois que lhe tinham estranhado o modo, uns discordando se ele próprio se atirara para o autocarro ou alguém o tinha empurrado.
Sobreviveu, mas não sabe explicar, pode ter sido uma vertigem, tão-pouco se lembra de ter metido a estatueta no bolso, a enfermeira é que lhe mostrou os cacos e perguntou a rir se andava sempre com o santinho.