"Um dia de Abril de 1960, em Amsterdam, incapaz de suportar por mais tempo a arbitrariedade do meu chefe, demiti-me do emprego que tinha no departamento comercial da embaixada do Brasil. Depois, com os meses a passar no aguardo de uma justiça que não vinha, sem dinheiro, sem amigos, orgulhoso demais para recorrer à Assistência Social, conheci o desespero do náufrago a quem as ondas, lenta e inexoravelmente, arrastam para o largo e a perdição.
Todos
os meus dias eram sombrios, recordo a maioria das horas como asfixiantes. E
porque os dois grandes jornais para que antes tinha trabalhado, um no Rio de
Janeiro, o outro em São Paulo, não viam interesse em manter correspondente
numa Holanda onde pouco acontecia, nem me parecia viável voltar casado e com
filhos para o Paris dos meus tempos de boémia, agarrei a primeira tábua a que
pude deitar mão: o negócio do café.
Quando o interesse em jogo ultrapassa a capacidade de uma das partes, a fase final de cada negócio conhece a febre e a tensão dos lances de roleta. Vai ser tudo, vai ser nada. Atinge-se gradualmente o estado de irrealidade em que os desejos se transformam em certezas, todas as mensagens soam positivas, na visão predomina o cor-de-rosa. Vai ser tudo.
Para mim, nessa altura, a eventualidade de uma perda tinha-se esfumado em definitivo: o ganho futuro dependia apenas de um homem, e no começo de Outubro, quando recebi o telegrama em que ele confirmava a intenção de no Rio de Janeiro, daí a dois dias, assinar o contrato porque eu esperava, vi-me rico.
Corri a comprar bilhete, meti na mala o pouco necessário para uma rápida ida-e-volta, cheguei ao aeroporto velho de Schiphol meia hora antes da partida do avião e, ao pagar o táxi notei com surpresa, mas sem receio, que me restava no bolso uma nota de dois florins e cinquenta.
Voar para o Brasil significava então aventura e luxo. Em classe turista os assentos ofereciam a largueza da "Royal Class" actual, as hospedeiras de bordo eram impecáveis de elegância e maneiras, o DC-7 em que embarquei, um colosso, tinha a robustez que se esperava das naves interplanetárias.
Em etapas que agora parecem curtas, parámos em Paris, em Lisboa, e voando sobre o Saará foi-nos servido em verdadeira porcelana um verdadeiro jantar. Ao escurecer chegámos a Dakar. Esperava-nos aí o espectáculo de algumas dezenas de cadáveres semi-carbonizados, alinhados contra a parede do edifício do aeroporto, vítimas de um avião que pouco antes aterrara durante um aguaceiro e, ultrapassando a pista, fora explodir na floresta vizinha.
Recordo que trocámos palavras de circunstância - camuflando o pensamento "antes eles do que nós" - e nos fomos acomodar nos sofás de um salão, onde um enorme ventilador movia lentamente o ar carregado de humidade.
No outro extremo, medalhado, carrancudo, sentado a uma mesa presidencial, um funcionário francês - o Senegal gozava então apenas uma semi-independência - ia carimbando os passaportes que um subalterno negro nos vinha pedir um a um e lhe levava.
Bebeu-se, fumou-se. Por fim as hospedeiras anunciaram que estava tudo pronto para continuarmos viagem. Não houve remédio senão passar mais uma vez junto dos mortos que, ainda descobertos e expostos à chuva, exalavam já um cheiro que nos obrigou a tapar o nariz e a correr.
Desde Paris sentara-se junto de mim a mulher de um deputado brasileiro, faladeira incrível. Com um gravador no regaço, só parava de falar para me obrigar a ouvir a voz do homem ao pronunciar um discurso no parlamento.
- Que timbre! Você não acha? Que volume! Quando ele discursa a oposição treme!
A certa altura anunciou-me que ia retirar a maquilhagem e desapareceu por longo tempo na retrete, voltando de lá com a cabeça escondida por um véu azul.
Recostada ao meu lado, descalça, de boca aberta, adormecera agarrada ao gravador, aspirando e soprando o véu com uma regularidade de pêndulo. Sentado à janela, incapaz de parar o torvelinho dos pensamentos e dormir, eu lançava de vez em quando um olhar preocupado aos motores que, aquecidos ao rubro, cuspiam chamas azuladas. Aqui e ali, por certo inquietos como eu, outros colavam também a cabeça aos vidros, procurando devassar o negrume que nos rodeava, exorcizando com sorrisos o temor de nos sabermos desamparados sobre o oceano.
Muitas horas depois, mas ainda noite fechada, aterrámos no Recife. Embora exaustos e entorpecidos não nos deixaram sair do avião: porque vínhamos da África as autoridades sanitárias exigiam fazer imediatamente e ali mesmo o seu controle.
As portas abriram-se, entrando por elas uma lufada de ar morno e pegajoso, e dois funcionários de bata branca que, distraídos e conversando, verificaram os certificados de vacina. Completada a formalidade desapareceram pela porta junto da cabine, enquanto que pela da cauda entravam dois outros com um pulverizador às costas.
Começando de lá percorreram metodicamente a coxia, fazendo cair sobre nós uma densa nuvem de DDT. "Por causa da tsé-tsé e da outra bicharada", explicou alguém. Semi-asfixiados e a tossir guiaram-nos para um barracão onde, as mulheres de um lado, os homens do outro, sacudimos a roupa e tomámos um duche."
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Excerpto de Scoop in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia -Quetzal 2011