Como se depois de tantos anos o relógio biológico tivesse ganho esse hábito, por volta das nove da manhã abriu-se a porta da garagem, momento que o Tom-Tom escolheu para anunciar que falhava a ligação com o satélite, aborrecimento de pouca monta para quem conhece o caminho de cor e salteado. Metemos à estrada em direcção a Breda e à fronteira, onde sempre paramos para atestar o depósito, não porque na Bélgica falte gasolina ou nos assuste o vírus local, mas porque o atendimento nas bombas uma vezes é bruto, outras tão complicado com códigos digitais, senhas várias, e um linguajar flamengo que os nativos imaginam ser língua universal, que para manter a calma atravessamos a Bélgica sem parar.
Um pouco depois de Gand há uma localidade com o nome bíblico de Nazareth, e junto à estrada um hotel com um excelente restaurante. Durante anos foi paragem obrigatória para o almoço, hoje acenamos-lhe com saudade, pois os nossos estômagos há muito não aguentam os desvarios que nos levavam então a fazer em cinco ou seis dias o caminho que agora espartanamente fazemos em três.
Muito depois foi preciso encher de novo o depósito, e também aqui a coisa era de códigos, pelo que fui ao estabelecimento perguntar como funcionava o sistema. Em triste hora o fiz, porque teria dado três ou quatro passo no estabelecimento quando em simultâneo aconteceram três coisas: a senhora da caixa a berrar que eu não trazia a máscara, as trinta ou mais pessoas que ali estavam a olhar-me apavoradas, e como o estabelecimento tinha o que creio ser aparelhagem de reconhecimento facial, ouvia-se no altifalante uma voz metálica a repetir: "Dentro deste estabelecimento há uma pessoa sem máscara!"
Saí para ir buscar o cartão de crédito, regressei à caixa já com máscara, mas a minha obediência em nada mudou a expressão dos que, cidadãos cumpridores, continuavam a olhar-me como um potencial criminoso.
O cartaz do Parc Astérix anuncia a vizinhança de Paris, entra-se calmamente no Periphérique, a via circular, e aponta-se o coche na direcção que os painéis dizem ser a de Bordeaux. A paz de espírito desaparece no momento em que a condução ali é em simultâneo louca e disciplinada, com um incrível número de motociclistas a espremer-se a 110/h por entre os carros, o que tem tanto de número de circo como de tentativa de suicídio.
Desde há muito cronometramos quanto nos demora a atravessar o Periphérique e o récorde mínimo está em trinta e cinco minutos, o que nunca mais repetimos, mas o que desta vez nos esperava desafia a imaginação, pois foram um pouco mais de quatro horas para um percurso de 34 km, com a agravante de que de certeza três delas foram a parar e a avançar em primeira e segunda velocidade, o motor a queixar-se, a bateria a anunciar que a qualquer momento entregaria a alma a Deus, nós a rezar para que o não fizesse. De facto deve ter-se apiedado da nossa aflição e sem resmungar pôs-se a caminho dos trezentos quilómetros que faltavam para chegarmos a Poitiers.