Por natureza sou alérgico à autoridade, mas felizmente têm sido muito poucas as ocasiões em que me vi num interrogatório policial, e puxando pela memória dessas poucas só recordo três.
A primeira, em Vila Nova de Cerveira no Verão de 1947, teve lugar no posto que a PIDE ali mantinha e era chefiado pelo inspector Rocha, que apontou para que me sentasse do lado oposto da secretária e sem mais demora entrou no assunto: já tinha falado ao meu velho, falava agora comigo para me avisar que deixasse certas companhias nem falasse de certas leituras, porque isso só trazia chatices, às vezes grandes chatices. Tivesse juízo.
Mais não disse, levantou-se para me dar novo abraço e, sorridente, acompanhou-me até à porta.
A segunda vez foi em Amsterdam em 1962, quando o espírito de rebeldia e as andanças da vida me tinham feito perder o emprego na Embaixada do Brasil. Fui à Polícia dos Estrangeiros para requerer um visto de residência e tive o sentimento, quase a certeza, que o agente que me interrogava era dos que sentia pena de que Hitler tivesse perdido a guerra, e que a Holanda não estava à espera de um sujeito com cara de judeu. Depois de quase duas horas de interrogatório, perguntas insultuosas e ameaças, como eu não desistisse em lhe lembrar os meus direitos, finalmente pôs os carimbos e fui em paz.
Em Maio de 1966, no que se chamava então o aeroporto das Pedras Rubras, no Porto, um PIDE mandou-me sair da fila de passageiros que iam embarcar, e durante o que me pareceu uma eternidade interrogou, ameaçou, sugeriu, voltou a ameaçar, voltou a exigir que além do passaporte lhe mostrasse também a caderneta militar, e finalmente, depois de com Lisboa ter controlado que eu realmente tinha feito a tropa e também pagara a multa que sofriam os que queriam emigrar, não havia maneira de me prender e pôr a caminho da Guerra Colonial.
Dias atrás reparei que um dos meus pares de óculos estava a pedir conserto, e embora não fosse urgente, só à cautela, telefonei à óptica a marcar a hora e ontem lá fui, com a boa disposição que dá uma tarde de aguaceiros depois de tantos dias de calor.
A porta estava fechada e nela um aviso de tamanho desproporcionado e em letras gordas a avisar que só se atendia por marcação, apenas um cliente de cada vez.
Entrei, pareceu-me que o funcionário sorria por detrás da máscara, creio que o ouvi dar-me as boas-tardes e, afastado mais do que o metro e meio do regulamento, apontou o desinfectante para as mãos. Desinfectei.
Então, a voz distorcida pela máscara e num tom de interrogatório policial, lendo o papel que segurava, quis saber se eu sofria do corona; se tinha ou tinha tido sintomas de infecção; se familiares ou vizinhos meus apresentavam sintomas; se recentemente tinha estado em contacto com infectados; se tinha ou tinha tido acessos de tosse ou o nariz a pingar; se conhecia algum infectado; se nos últimos quinze dias tinha ido ao estrangeiro, lá tinha permanecido mais de uma quinzena ou de lá tinha voltado; se nos últimos três meses tinha estado internado num hospital; se nos últimos quinze dias tinha ido a uma consulta médica e por que motivo; se…
Ali especado, a paciência no fim, quando o vi pegar numa segunda página achei que bastava e com um aceno fui-me embora.
Estranho tempo este, polícia por toda a parte.