sábado, agosto 8

O rei dos elefantes, Camilo e o vosso servidor

Público

CRÓNICA P2 VERÃO 2020

Ferreira Fernandes

Juan Carlos Borbón y Borbón, um bom e o outro bem menos

Se calhar tenho de recorrer a outro romancista, olha, o Camilo, para perceber a queda deste anjo.

8 de Agosto de 2020, 6:00

 

CONTEÚDO EXCLUSIVO

O escritor Rentes de Carvalho, que vive com eles há décadas, gosta de contar os holandeses. Tem livros sobre o assunto. As escadas íngremes e estreitas e as sandes comidas de faca e garfo. As retretes também estreitas (que mania, numa terra sem montanhas a apertar…) e colocadas, por vezes, em lugares insólitos – ele viu uma numa cozinha. Gosto particularmente de como descreve dois holandeses a chocar de bicicleta. Caem, levantam-se, pegam na bicicleta e, sem se xingar nem perguntar se o outro ficou bem, vai cada um à sua vida.

Acho que, mais do que os holandeses, o transmontano Rentes de Carvalho testa os restantes portugueses, mariquinhas, para cá do Marão. Esta semana, num sofá, pensei nele. Via eu a primeira etapa da Volta à Polónia e o encontro rude entre dois ciclistas holandeses. Ter um escritor português ilustrado por um vídeo que deu a volta ao mundo, mesmo em brevíssimas imagens, vale quase tanto como ganhar outro Nobel de literatura.

A chegada a Katowice dá-se numa descida para maior emoção. Nos metros finais, os ciclistas vão em magote e a mais de 80 à hora, sangue bombeado a desligar a secção do cérebro onde mora a prudência. Se já no dia a dia dois ciclistas holandeses estão vidrados num objetivo, calculem quando a meta é a meta e um prémio! Dylan Groenewegen, holandês, ia encostado às guardas, quando o seu cotovelo direito adivinhou que pela nesga furava Fabio Jakobsen, outro holandês. O cotovelo violado não consentiu. O intruso partiu pelas bermas fora; o guarda-fronteiriço arrastou-se pelo asfalto; e, grand finale, houve bicicletas voando como um bando de pardais enxotados da árvore.

Depois, as notícias confirmaram Rentes de Carvalho. Após o choque, os dois holandeses foram cada um para o seu lado, sem se dizerem água vai. Embora, neste caso, além de serem holandeses, talvez houvesse razão suplementar:  Jakobsen ficou em coma. Em todo o caso, eu continuei no sofá, desasado por não ter o meu escritor transmontano preferido a explicar-me outros acontecimentos da semana. E como precisei dele!

Desde logo, o jovem que fez uma cena nas redes sociais a pedir um café, com falta de chá. Cena igual à que conheço, há anos, com o email do nigeriano contumaz: “Meu, ajuda-me.” Com a diferença do jovem português pedir-me um euro, enquanto o nigeriano não me pede, promete milhões. Ah, e outra diferença: o português dava a cara e um nome honesto.

Enfim, uma ingenuidade com pequenas mentiras, como logo se desmontou. Enfim, ainda: por vezes, as redes sociais de social têm pouco, são lubrificadas pelo interesse pessoal, e quase sempre são redes que não amparam, podem até ser cruéis. O que aconteceu ao jovem no Twitter foi ele querer levar os outros a caçar gambozinos e os outros caçarem-no, a ele, com um Double Rifle .577 Nitro Express, com munições para elefante.

Por falar em elefantes, o nosso rei, que está em desdita desde que foi visto a caçar no Botswana, em 2012. O nosso, o de Borbón (Borbón y Borbón, aliás), que o de Bragança é só para reinar, enquanto o outro reinou mesmo. Nosso, de Cascais na juventude, e de Cascais, se para lá for transladado na reforma. Juan Carlos I poderia ter dado ao jovem português um bom conselho: “¿Por qué non te callas?” E para si próprio, outro conselho: “Encanta em grupo, não te focalizes num caso.”

Como talvez seja do domínio público, privei com Juan Carlos. Não sou Arnoso nem Balsemão, com ele não comi gelados no Santini, e, de facto, só o vi ao vivo uma vez, já ele era rei. Daí nunca o ter chamado Juanito, mas vi-o como flagrante Don Juan. Em 1987, eu era um pobre repórter, metido na comitiva oficial do Presidente Soares. Numa receção em palácio madrileno, o rei estava à beira dos 50 e parecia um soberbo trintão cercado de beldades.

Vi Marta Chávarri, então marquesa de Cubas, que era só mais uma num bouquet fascinado. Cito-a porque foi a única que reconheci. Já agora, explico-me: em Lisboa, antes da viagem presidencial, fui ao barbeiro e vi-a na capa da ¡Hola!. E posso confirmar, embora com azedume republicano, que o rei tratou a todas com respeito democrático, espalhando por igual o seu encanto.

Passaram os anos, décadas, e venho a saber, Juanito, não te precaveste. “Encanta em grupo, não te focalizes…” No outro dia, voltei ao barbeiro e soube que até a Chávarri se tornou quase monja. Em contramão, porém, de Juan Carlos I, septuagenário, octogenário, fui sabendo nos últimos dez anos, apaixonou-se por uma cantora lírica como um rei romeno de passagem pelo Estoril nos anos 40. E isso quando ela nem cantora é, nem lírica, mas só objeto de uma paixão. Ele até lhe deu uma casa no Mónaco. E ela, desagradecida, denunciou: ele é corrupto.

É? Não é? Como o que me interessa não é ela, mas ele, de Rentes de Carvalho, um especialista em holandeses, não espero grande ajuda. Mais depressa os países-baixistas se interessariam pelo objeto da paixão, a alemã, que viu num rei espanhol o que as Finanças holandesas veem nos impostos dos portugueses chorudos. Se calhar tenho de recorrer a outro romancista transmontano, olha, o Camilo, nascido na lisboeta rua da Rosa, para perceber a queda deste anjo, Borbón y Borbón y por aí adiante.

Entretanto, empurrado pelo noticiário, recordo um líder que Shakespeare já descreveu em seu tempo. Um irmão que matou à pistola e por acidente o irmão. Um filho que usurpou o seu pai porque era isso o que havia a fazer. Um afilhado que aceitou o ditador como padrasto para poder defenestrá-lo. Um político fino que fingiu aceitar um primeiro-ministro do passado, Arias Navarro, para este mostrar que era mesmo do passado e, então, impor um corajoso político do presente, Adolfo Suárez, para que o futuro se fizesse. Enfim, um Juan Carlos I, O Breve, que construiu o seu próprio destino de ser rei durante 38 anos.

No dia 23 de fevereiro de 1981, um imbecil de tricórnio à cabeça e pistola na mão entrou no recente Parlamento livre. Antonio Tejero deu um tiro para o teto e todos os recém-eleitos refugiaram-se sob as cadeiras. Todos, exceto três: o comunista Santiago Carrillo e o primeiro-ministro de direita Adolfo Suárez, ficaram sentados e cabeça erguida, e o general Gutiérez Mellado levantou-se e foi increpar os insurretos. Tesos, só os três. Por trás deles, Juan Carlos garantiu que eles não fossem em vão. 

Mas Juan Carlos expondo a sua moldura. Um chefe de Estado que o era por ter nascido com a possibilidade de ser rei, condição que quase nenhum espanhol tem. Um ex-rei que se expatria como se fosse punição, quando do que se trata é procurar impunidade em alegados atos de corrupção, mercê a que, oficiosamente, quase nenhum espanhol tem. Enfim, pois, mais um serviço prestado por Juan Carlos: a causa monárquica é inferior à republicana.

Como não lhe agradecer tanta lição?