É daquelas situações que resistem ao tempo e de vez em quando inesperadamente se recordam, talvez pela incapacidade de as arrumar definitivamente no passado, ou ainda porque ao deixar-nos perplexos nos impedem de levar o raciocínio até ao fim e decidir por uma explicação que satisfaça.
Aconteceu comigo num passado que começa a ser remoto, tem a ver com uma jovem que conheci quando namorava um afilhado meu, se tornou assim também afilhada, e embora de longe fui seguindo as fases do casamento, o sucesso nos estudos, a maternidade, o êxito na profissão, os altos e baixos da sua vida. Encontramo-nos irregularmente, passa às vezes mais de um ano sem nos vermos, o que em nada afecta a nossa amizade.
Tem ela um profissão toda virada para a exactidão, fala da Matemática como outros falam das grandes paixões, em histórias da carochinha nunca pegou e o que no secundário a obrigaram a ler pronto o esqueceu.
Foi assim que uma tarde, faz anos, a vejo chegar mais sorridente do que de costume, abraça-me e beija-me com uma efusão que lhe desconheço, e porque mo põe à altura dos olhos vejo que traz um romance meu. Quer um autógrafo. Assino. Devolvo-lhe o livro, de certo modo perplexo de vê-la sorrir de uma maneira que não consigo interpretar.
- Sabe que nunca li um livro?
- Sei.
- Mas li este.
- E então?
- É isso que me pergunto! Como é possível que uma pessoa que eu conheço desde miúda escreve estas coisas? De que cabeça tira isto? O que é que sente uma pessoa que escreve? Como é que faz? São casos que lhe contaram?
Sorri, encolhi os ombros, ela não quis saber mais, falámos doutra coisa.