São bons amigos,
todos a rondar os setenta, depois do almoço traz cada um sua cadeira e vão
sentar-se junto do coreto para a conversa e um bocado de Sueca. Suspiram de
alívio se o Belarmino demora ou não vem, porque então ficam mais sossegados. É
que ele, que de si próprio diz ser uma pilha de nervos, seja qual for o assunto
encontra sempre maneira de discordar ou contradizer, às vezes excitando-se a
ponto que fica roxo, com a voz esganiçada e uns tremores que lhe dão no braço
desde que teve o AVC.
Infelizmente é facto,
neste tempo que estamos a viver sobram os motivos de desacordo e irritação. De
memória de gente, nem mesmo quando havia guerras ou aconteciam grandes
desastres como terramotos e tsunamis, nunca as pessoas se mostraram tão aflitas
e tão medrosas, prontas a apontar o dedo quando lhes parece que os outros se
riem do medo, desdenham dos avisos ou têm um ar desleixado se se lhes fala
dos perigos que correm e dos que podem
fazer correr aos outros.
O Belarmino, no mais
uma pessoa de boas qualidades, sempre amigo do seu amigo, nesse particular da
pandemia que nos traz preocupados e duma maneira ou doutra a todos transtorna a
vida, parece ter agora um prazer dobrado em, como ele diz com um sorriso desdenhoso,
"ser do contra", atitude que gosta de explicar como a única que
convém ao cidadão cioso dos seus direitos e lhe permite opor-se à tirania dos
caciques. Porque seja como for, desde que o mundo é mundo sempre houve tirania,
mas agora mais do que nunca, pois nem no tempo de Salazar se viu um tal abuso
do poder. Houve então a gripe espanhola, a tuberculose, o tifo, a malária e
ninguém sabe ao certo quantos milhões morreram. Mas não venham com tretas, nem
precisam de lhe lembrar que os tempos eram outros e não se comparam a estes, do
que tem a certeza é que se Salazar tivesse dado ordem para trancar as pessoas
em casa, ainda por cima mascaradas como se fosse Carnaval, tinha havido uma
revolução. Nesse tempo o povo sofria, aguentava muito, passava mal, mas tinha
tesura, não era esta carneirada com o rabo entre as pernas e olhos de medo, a
iludir-se com desinfecções e esperançada de que o "bicho" só goste do
vizinho.
Vêem-no chegar,
surpreende-os que não traz cadeira e, novidade, apoia-se a uma bengala que
antes não usava, e como nunca o viram com tal modo a pergunta sai de todas as
bocas ao mesmo tempo: - Então pra que é isso?
- A bengala? É pro
que me chatear com avisos do vírus, porque pra um par de bofetadas já não tenho
força.