segunda-feira, julho 27

Instantâneo a preto e branco


"Segunda-feira, 25 de Julho

Ela pinta com talento. Os seus quadros são povoados de figuras trágicas que se retorcem nas angústi­as do viver, figuras deforma­das pelo terror de pressentir o sem-destino dos caminhos por onde todos vamos.
As cores que usa possuem fulgores que miste­riosamente revelam o íntimo das nossas inquie­tações; e há qualquer coisa no modo como trata as formas que é ao mesmo tempo harmonioso e ameaçador, uma espécie de memento dos ritmos a que obedece a tur­bulência da vida.
Pinta com talento, com alma e a paixão que marca o verdadeiro artista, aquele para quem só a sua arte conta e todo o resto é secundário. Também, como verdadeiro artista, ela pinta em solidão, quase em clausura.
Mas como tantas vezes acontece, o mesmo destino que assim a beneficiou, encheu-a de um orgulho desmedi­do, maléfico como o veneno. Os quadros vão-se amontoando no seu atelier e de vez em quando expõe-os numa galeria, numa escola, numa dessas fábricas ou igrejas vazias que o utilitarismo transforma em centros cultu­rais. Mas expõe-os a contra­gosto e infeliz, porque a fábrica abandonada, a escola, a galeria, não lhe satisfa­zem o sonho. Sonho louco que exige que o mundo não reconheça outro talento além do seu e, incon­di­cional­mente, só a ela admire."

in Tempo Contado - Diário 1994-1995 - Qutezal, Lisboa 2012