"Segunda-feira, 25 de Julho
Ela pinta com talento. Os seus quadros são
povoados de figuras trágicas que se retorcem nas angústias do viver, figuras
deformadas pelo terror de pressentir o sem-destino dos caminhos por onde todos
vamos.
As cores que usa possuem fulgores que misteriosamente
revelam o íntimo das nossas inquietações; e há qualquer coisa no modo como
trata as formas que é ao mesmo tempo harmonioso e ameaçador, uma espécie de
memento dos ritmos a que obedece a turbulência da vida.
Pinta com talento, com alma e a paixão que marca
o verdadeiro artista, aquele para quem só a sua arte conta e todo o resto é
secundário. Também, como verdadeiro artista, ela pinta em solidão, quase em
clausura.
Mas como tantas vezes acontece, o mesmo destino
que assim a beneficiou, encheu-a de um orgulho desmedido, maléfico como o
veneno. Os quadros vão-se amontoando no seu atelier e de vez em quando expõe-os
numa galeria, numa escola, numa dessas fábricas ou igrejas vazias que o
utilitarismo transforma em centros culturais. Mas expõe-os a contragosto e
infeliz, porque a fábrica abandonada, a escola, a galeria, não lhe satisfazem
o sonho. Sonho louco que exige que o mundo não reconheça outro talento além do
seu e, incondicionalmente, só a ela admire."
in Tempo Contado - Diário 1994-1995 - Qutezal, Lisboa 2012