Conferência na Biblioteca Almeida Garrett – Porto 28.10.2001
INFLUÊNCIAS
Na minha idade o andar à procura
de influências é um pouco como fazer
pesquisa arqueológica. Com resultado semelhante. Os ossos do dinossauro
ora têm cem mil anos, ora um milhão de anos, e a única certeza que nos fica é
de aquilo é antigo e envolto em névoa.
Embora mais
recentes, velhas apenas de seis ou sete décadas, um nevoeiro igual envolve as
influências que sofri.
Não é que a
memória me falhe, bem ao contrário, mas até ao momento em que me convidaram
para falar delas aqui, nunca eu, conscientemente, tinha feito um levantamento
dos lugares, dos acontecimentos, dos livros e das pessoas que, suponho,
contribuíram para fazer de mim a pessoa e o escritor que me tornei.
As influências ressentem-se, sofrem-se,
mas é pena perdida querer classificá-las em maiores e menores, boas ou más,
querer medir a diferença de impacto que tiveram na nossa formação, pois em
muito tudo depende do momento e da disposição em que as recordamos.
Se fosse o
caso de nomeá-las todas, isso certamente daria matéria para um livro.
Felizmente, limitado pelo tempo e pela paciência de quem me ouve, achei
bastante o dividi-las em três géneros – paisagens, livros, pessoas – e
despachá-las com a brevidade possível.
O termo paisagens deve entender-se
aqui num sentido lato, já que nele incluo não somente alguns locais do meu
passado, mas o povo que os enchia, e alguns acontecimentos.
Nasci num ponto alto de Gaia, e
embora o tenha já escrito noutra altura, parece-me apropriado repetir que “Nem
a baía de Guanabara, nem New York vista de avião a anoitecer, nenhum Paris,
nenhuma Roma, a Amazónia, as pirâmides, o deserto, nada disso que viria depois
e é grandioso, me deixou uma impressão tão viva e tão duradoura como a da paisagem do Porto que se avistava das janelas da casa
onde nasci.”
Mais
tarde dei-me conta de que a razão profunda do meu fascínio não era tanto a
inegável beleza da vista, mas o facto de dali, como defronte dum gigantesco écran
tridimensional, poder testemunhar do burburinho de mil vidas.”
Esse écran, que ia de
Campanhã até ao lugar onde nos encontramos – a que continuo a chamar o Palácio
de Cristal – incluía ainda a Serra do Pilar, ambas as margens do rio e os
armazéns de vinho.
Para a
esquerda do largo tínhamos a riqueza da aristocracia: a quinta dos condes de
Campo Belo, separada da nossa modéstia por um muro alto. Do lado direito,
igualmente protegida por um muro, e igualmente rica, a vivenda da família
Cockburn, aquela onde agora se encontram os escritórios da firma do mesmo nome.
As janelas
das traseiras davam para a viela das Azenhas. Aí havia uma casa de tia - bordel era então uma palavra literária - a
forja dum ferreiro, um sem número de casebres que entroncavam uns nos outros,
um ambiente de bazar oriental e com a indescritível miséria dos anos trinta.
A correr
das janelas da frente para as de trás, essas paisagens marcaram-me, e creio
que, tanto como dos livros, me nasceu
delas a consciência da injustiça social.
Gente de sangue transmontano, duas
vezes por ano íamos, como se diz, “à terra”. O comboio directo saía de São
Bento às oito da manhã, às cinco ou seis da tarde chegava ao Pocinho – cento e
cinquenta quilómetros em dez horas. Tínhamos depois três ou quatro horas para
percorrer cinquenta quilómetros na linha do Sabor. E com mais três horas de
burra pela serra deslocávamo-nos no espaço e no tempo.
O
burel e o linho das roupas – sabe alguém ainda o que é o sarrubeco? - o arado
de madeira, os carros de bois, o jogo do ferro, os malhos, tudo isso nos tinham
deixado os Romanos, e desde que eles tinham partido, por volta do ano 406,
pouco tinha mudado.
A
paisagem do Nordeste transmontano, os usos e os costumes, as pessoas desse
tempo, exerceram sobre mim uma influência tão profunda que de facto ocupam o
essencial daquilo que até hoje escrevi.
Passando agora aos livros que
influenciaram a minha infância, deixem-me escapar à ortodoxia das definições e
incluir entre eles um jornal. “O Primeiro de Janeiro”. Nesse tempo e até ao
começo dos anos sessenta, era o “Janeiro” uma espécie de bíblia, com influência
sobre tudo o que ficava a norte do rio Douro.
N’
“O Primeiro de Janeiro” aprendi a ler, e é impossível dar hoje uma ideia
daquilo que o jornal significava numa época em que mesmo o rádio era um aparelho
exótico.
Os
artigos de página inteira, as reportagens – lembro-me de algumas,
impressionantes, sobre a pesca do
bacalhau na Terra Nova – os folhetins, tudo isso foi para mim como uma mina de
ouro onde, sem falha, e preferindo-a à brincadeira, eu todos os dias descia.
N’
“O Primeiro de Janeiro”, em fins de 1935, segui a invasão da Abissínia pelos
italianos. Eu tinha então cinco anos e meio e recordo a estranheza que me
causou uma fotografia em que se viam dois aviões, que a legenda dizia serem de
caça. A caça a pé, com cães e de espingarda ao ombro, era a única de que eu
tinha conhecimento.
Em
1936 começou a Guerra Civil de Espanha, depois a Segunda Guerra Mundial, e
durante nove longos anos “O Primeiro de Janeiro” continuaria a ser o cordão
umbilical que me ligava ao mundo, acalentando-me na feliz ilusão de que um dia
tudo mudaria para melhor.
Simultaneamente com a do “Janeiro”
eu fazia outra leitura decisiva: a dos romances de Arnaldo Gama (1826-1869).
Deles destaco O Sargento-Mor de Vilar, O Balio de Leça, O
Segredo do Abade, Um motim há cem anos.
Nesses
livros, hoje esquecidos, o estilo é bombástico, a psicologia um bocado
simplista, e como influência literária seriam do pior. Mas para o garoto que eu
era, que formidável poder tinha o seu autor na descrição dos movimentos das
multidões.
Com ele,
que nasceu e morreu aqui no Porto, assisti eu no dia 26 de Março de 1809 à
entrada dos soldados do marechal Soult na cidade, e no dia 29, quarta-feira de
Cinzas, testemunhamos ambos o desastre
da Ponte das Barcas. Inesquecível.
Foi também
nos livros de Arnaldo Gama que aprendi a paixão. As suas intrigas seguiam os
modelos de Eugène Sue e Paul de Kock, e neles havia sempre do que eu mais
gostava: declarações de amor, pontos de honra decididos em duelos ao luar,
grandiosos gestos de perdão.
Mas influência mais importante, a
que de facto deixou marca duradoura, e de certo modo ainda perdura no carinho
da recordação, foi a de Eça de Queiroz. E no primeiro livro que dele li, A Relíquia, a ironia da frase inicial:
“O meu avô foi o padre Rufino da Conceição”, ficaria para mim como um
marco miliário.
A sua parte
d’ As Farpas, Uma Camapnha Alegre, seria outra revelação. E ainda
hoje, quando a leitura de outros escritores portugueses me aborrece, me
desanima, ou desespera, em geral é à obra de Eça de Queiroz que recorro em
procura de alívio, e para me dar a esperança de que deve ser impossível que o
seu génio literário desapareça sem herdeiros que o mereçam.
Eu
andava então pelos doze ou treze anos, e o resto dos seus romances levei-o de
enfiada. Durante muito tempo voltei à leitura de Eça de Queiroz, umas vezes
como sentimental journey, outras pelo prazer de redescobrir a elegância
do seu estilo e do seu veneno, a agudez da sua crítica, a impiedosa visão que
tinha das mazelas do país, as quais, mau
grado a passagem do tempo, parecem dispor de imutável persistência.
Depois muitos outros livros e
autores vieram, mas nenhum feitiço iguala o primeiro. Além disso, o sentido
crítico vai-se afiando, a inocência vai-se perdendo, a partir de certo momento
o gosto da leitura vai diminuindo.
Não porque
a qualidade dos livros se torne menor – a qualidade é, muitas vezes, apenas uma
questão de perspectiva – mas porque são menos as surpresas, porque tropeça a
gente nas repetições.
Ao fim e ao
cabo, passada a grande gulosice de aprender que se sente até à juventude, o
espírito torna-se rebelde às influências e prefere descobrir o seu próprio
caminho.
No tempo em que isso mais contava,
tive a sorte de conviver com um certo número de pessoas interessantes. Nem
todas tinham bom carácter e algumas não se conformavam com a lei nem com a
moral. Certo é que, homens ou mulheres,
todas eram excepcionais.
Dentre essa
gente destaca-se Joaquim Novais Teixeira, provavelmente um ilustre desconhecido
para a maioria, senão para todos os presentes.
Todavia, é
bem possível que para aqueles que um dia fizeram parte dum coro ou dum orfeão
escolar, tenham cantado canções como aquela que começa por:
“A
cantarinha de barro, tem trejeitos de mulher...”
e que umas vezes aparece impressa
com o nome do autor, Joaquim Novais Teixeira, e outras – o que é honroso para o
poeta – são dadas como sendo “cantares
do povo”.
Certo
é que essa e uma dúzia de outras as escreveu e publicou cerca de 1916 - teria
ele então uns dezoito anos - num folhetozinho de que guardo um raro exemplo.
Joaquim Novais Teixeira nasceu em Guimarães, cerca de
1898 – ele não gostava que lhe perguntassem a data do nascimento – e faleceu em
Paris em 1973.
Romanticamente
monárquico, em 1919 refugiou-se em Madrid e, pelo brilho do seu intelecto, de
imediato foi aceite nas tertúlias intelectuais da cidade.
Desse
tempo datariam amizades e intimidades que lhe ficaram para a vida inteira, com
homens como Picasso, Buñuel, Miró, Pio Baroja, Unamuno, Valle-Inclán, de facto
com quase todos os que então contavam na intelectualidade espanhola.
De
1936 a 1939 foi secretário particular de Miguel Azaña, primeiro presidente da
República espanhola, honrosa situação para um português, e tanto mais curiosa
quanto Novais Teixeira, durante a vida toda, falaria o espanhol e o francês,
filtrando-os através da nossa língua, e com um inconfundível sotaque minhoto.
Ao findar a
guerra civil refugiou-se em Paris, e ao começar a Segunda Guerra Mundial partiu
para o Rio de Janeiro.
A
intelectualidade brasileira acolheu-o de braços abertos, e o mesmo se pode
dizer da política, tornando-se Novais Teixeira uma daquelas figuras que,
discretamente, mas de facto, possuem grande autoridade e influência.
A
sua colaboração nos jornais “O Estado de São Paulo” e “O Globo”, sobretudo as
suas análises políticas dar-lhe-iam verdadeira fama, tornando-o uma das figuras
intelectuais mais respeitadas do Brasil.
Em
1945 voltou a Paris, e é desse tempo que data a sua colaboração n’ “O Primeiro
de Janeiro”, para onde mandava de graça, por simples amor à sua terra e à sua
língua, a cópia daqueles artigos que lhe pareciam os melhores que publicava no
Brasil.
Leitor entusiasmado, quando eu
próprio fui para Paris levava comigo o seu endereço, e no dia seguinte ao da
chegada simplesmente telefonei ao senhor, dizendo que gostaria de falar com
ele.
Ele
disse “Venha”. Nessa mesma tarde, desconhecendo tudo da sua importância e da
sua fama, com a ingenuidade da juventude mostrei-lhe quatro ou cinco histórias
que tinha escrito.
Pouca
esperança tinha de que me desse atenção e
já me contentava o vê-lo em carne e osso. Mas ele sentou-se a ler.
Depois,
sem dizer se tinha ou não gostado, devolveu-me as folhas e perguntou-me se o
queria acompanhar a ver uns amigos que ia encontrar num café. Horas depois ele
e os amigos convidaram-me para jantar. Ainda
essa noite, ao apresentar-me a outra gente, ele diria: o José é escritor.
A
emoção e o choque foram demasiado. Passado
uma semana, e com a sua bênção, começava eu uma inesperada carreira no
jornalismo, ao mesmo tempo que ele me promovia à categoria de sobrinho
honorário.
A amizade e
a minha gratidão não terminaram com o seu falecimento. Joaquim
Novais Teixeira foi uma das duas maiores influências singulares que marcaram a
minha vida, como homem e como escritor.
Pela sua mão foi-me dado penetrar em meios
e travar conhecimento com personalidades que eu sabia que existiam, mas para
mim eram mais distantes e inacessíveis que os planetas.
O que com
ele aprendi da Literatura, do Jornalismo, da Arte, da História, da Política e
do Cinema - ele foi durante quase duas dezenas de anos membro do júri dos
festivais de Cannes e de Veneza - e
ainda sobre as andanças da sua e de outras vidas, acolhi-o eu como a mais
preciosa das dádivas.
Compatriotas
uns, estrangeiros outras, dádivas iguais couberam a muitos. E a fama de alguns
ganharam-na eles graças ao apoio que dele receberam e às portas que ele lhes
abriu.
Porém, com
uma única excepção, nunca a nenhum desses ouvi sobre Joaquim Novais Teixeira
uma palavra de agradecimento.
A excepção
foi Almada Negreiros que, grato pela ajuda recebida em Madrid nos anos vinte,
lhe pintou o retrato que se encontra hoje no Museu Gulbenkian.
Agora para terminar, mas ainda a
propósito de influências.
É possível que aqueles que sabem
que vivo há quase cinquenta anos na Holanda, se perguntem que influências terei
sofrido por parte de uma cultura, uma língua,
uma sociedade, e circunstâncias tão diferentes das do meu nascimento.
Entro aqui
sem diploma no capítulo da especulação psicológica e psiquiátrica, mas a
verdade – pelo menos a minha verdade – é que ressinto que nem a língua, nem a
cultura, nem a sociedade holandesa me afectaram.
O que, ao
contacto com a Holanda me aconteceu foi, creio eu, a criação inconsciente de
uma dupla identidade.
Deixem que explique. Em parte nenhuma um estrangeiro se
sente inteiramente benvindo. Mesmo quando se sente – como eu na Holanda
felizmente me sinto – há sempre dentro dele um mecanismo de defesa e de
auto-preservação de certos valores.
A sua
língua, a sua cultura, a sensibilidade, a memória, tornam-se-lhe uma espécie de
bagagem que, insensivelmente, manhosamente, um dia o obriga a enfrentar um dilema:
ou se agarra a
ela, permanecendo para sempre o estrangeiro, o estranho, o que
vem e fica de fora,
ou opta por uma assimilação que, em maior ou menor
medida, o poderá tornar indistinguível daqueles que o rodeiam.
Ora eu cheguei à Holanda com aquilo
que, em termos de língua, cultura e sensibilidade se poderia chamar uma bagagem
que me derreava. A apurá-la tinha eu conscientemente empregado boa parte do meu
tempo, do meu sentir, do meu esforço, e o descartar-me dela, mesmo em parte,
estava fora de questão, já que seria o mesmo que renegar o que tinha de mais
essencial.
A
falar verdade, no mais fundo de mim, eu desejava aquilo que em muitas outras
ocasiões tenho desejado: o impossível.
Neste caso
particular o meu desejo era permanecer intensamente português, e criar à minha
volta um muro. Claro que
isso não era fazível. O que por fim aconteceu pode-se comparar a um estado
patológico, a um caso de esquizofrenia. Não que eu tenha perdido o contacto com
a realidade e viva num mundo imaginário. Mas talvez
por reacção defensiva, de facto e involuntariamente, com o correr dos anos como
que me dividi em dois seres diferentes. Um português, de qualidades inatas. Um
holandês, com qualidades adquiridas.
Dois seres
que não se opõem, mas nem sempre se compreendem um ao outro e, de certo modo, funcionam com um incómodo
igual ao dos irmãos siameses. Embora no meu caso não partilham o mesmo corpo,
mas o mesmo espírito.
* * *