domingo, maio 24

Quando o sorriso é máscara


Estes dois não precisam que lhes venham com avisos, sabem de sobra que desde o princípio caminham em terreno minado, mesmo pequeno qualquer descuido poria fim a um encanto que dura há tanto tempo que por vezes ambos se perguntam por que foi, que força fez com que acontecesse assim e continue dessa maneira. Tanto mais porque vivem afastados, cada um com a sua família, os seus afazeres, encontrando-se de longe a longe e sempre na presença doutros, limitando-se à amabilidade e aos cumprimentos que se fazem aos amigos, às expansões e às frases de circunstância da vida em sociedade.
- Estás bem? – e involuntariamente riem, porque aos ouvidos alheios soará como uma cortesia de circunstância,  mas é para ambos em simultâneo a certeza de que o sentimento perdura, aquele misterioso sentir que não sabem se é amor, amizade, desejo, paixão, talvez febre da expectativa ou promessa que não podem cumprir, ambos atados de pés e mãos às aparências e aos seus deveres.
- Estás bem? – se não há ninguém por perto repetem a pergunta, às vezes agarrando-se as mãos num instante de carinho que só dura segundos, para logo retomarem o trato social, os sorrisos, a gentileza, a amabilidade, nada traindo do que sentem, da excitação que lhes causa estarem ali tão juntos mas ter cada um a sua vida, e em paralelo saberem que se tivesse podido ser, se os carris tivessem feito a agulha no momento certo os seus destinos ter-se-iam unido, embora no íntimo sintam que lhes faltaria então a febre que desde o começo a ambos excita, a corda bamba em que gostam de avançar, correndo o risco, desafiando o precipício.
Nunca foram para a cama, raros os beijos que se deram, passam semanas sem se ver nem contactar, numa tão perfeita imitação de indiferença que os familiares se queixam de que se devem ver mais a miúdo e lhes recordam o provérbio que avisa que não se deve deixar crescer erva nos caminhos da amizade.
Vêm então os almoços ao domingo, os aniversários, as festas, e como se fossem perdigueiros de bom farejo cheiram-se de longe, mas não correm um para o outro, a eles bastam os olhos, o sorriso, o indefinível fluído que a ambos atrai.
- Estás bem? – sai-lhes aquilo em uníssono, terna emoção a duas vozes que os outros ouvem com sorrisos, nem de longe capazes de imaginar o fogo que ali arde, a história de paixão,  altruísmo e sacrifício que poderia escrever aquele que possuísse o talento capaz de exprimir  sentimentos que só se imaginam num tempo antigo entre almas de excepção.