Para tristeza e aflição
basta-nos o pânico em que o mundo anda, assustado com vírus e infecções, a
olharmos desconfiados quando os outros se chegam perto demais, porque pode ser
distracção, mas há muito quem o faça de propósito e maldade, com aquele
sentimento vingativo de se tiver de ir eu então não fica cá ninguém.
Numa altura de tanta dor pesa
ainda mais a recordação de tragédias que nos tocam de perto. A notícia de que
no começo de Fevereiro o João Carrasqueira tinha desaparecido e o seu corpo
fora depois encontrado na barragem, causara entre nós, seus amigos, efeito
igual ao de uma bomba que explodindo nos deixasse cegos, surdos e atordoados,
pois poucos se lhe poderiam comparar na gentileza do trato, no sentido de
justiça, na simpatia que irradiava, no modo como numa discussão nunca impunha a
superioridade da sua inteligência.
Antigamente, fingindo sabedoria,
ouvia-se por vezes alguém dizer que com a morte tudo acaba, e de facto a
memória do trágico fim do Carrasqueira já se ia perdendo, quando três de nós
fomos chamados a depor como testemunhas num processo que os órfãos moviam à mãe
por uma questão de partilhas. Pelo menos assim julgávamos, longe de imaginar
que terminada a primeira sessão deixaríamos o tribunal em estado de choque e
depois no café ficámos algum tempo calados a olhar uns para os outros,
descrentes do que tínhamos ouvido, sem força nem vontade de discutir, perdidos
na confusão de não sabermos como conciliar o nosso sentimento com a crueza da
realidade.
Que houvesse desavença entre a
mãe e os filhos não era connosco, cada um lá teria as suas razões, mas o que
tínhamos ouvido abalara tantas certezas, desorientara-nos de tal maneira que
pouco mais além fomos do que um ou outro resmungo e aquele sacudir de cabeça
que é prova de que para certas emoções dificilmente se encontram palavras que
as traduzam.
O nosso simpático, cordial e inteligente João
Carrasqueira, avesso a extremos, pronto a conciliar, a bondade feito gente, no
começo do ano tinha-se tornado em casa um exemplar acabado do Dr Jekyll e Mr
Hyde: cruel, refinado na tortura, implacável a exigir dos seus submissão e
silêncio. Segundo o que os filhos contaram não era de violência física, pelo
menos com eles, mas humilhava-os e inventava culpas, fazia acusações tão desmedidas
que se perguntavam se aquilo não seria
perturbação mental, pois às vezes sem mais nem menos lhes cuspia na cara e
gritava o que então não tinham compreendido: “Se tenho de ir, ides vós também!”