Para Jacqueline Sarioglu
Querida Jacqueline,
A SALA
ONDE MESES ATRÁS NOS ENCONTRÁMOS tinha o ambiente e o mobiliário impessoal que caracteriza as
salas de reunião do nosso tempo. Talvez por isso, os cartazes alegres nas
paredes davam-lhe uma garridice artificial, que contrastava com a luz crua da
manhã e a melancolia da nossa conversa.
Melhor dizendo: do meu monólogo sobre as misérias do meu país. Sobre a fraude moral e social que são as estatísticas, quando pretendem contradizer com números a realidade das ruas e dos casebres. Sobre a sem-vergonha com que políticos e funcionários cuidam primeiro dos seus interesses pessoais, depois se divertem, gozam, e finalmente fingem tomar a peito os cuidados da res publica.
Melhor dizendo: do meu monólogo sobre as misérias do meu país. Sobre a fraude moral e social que são as estatísticas, quando pretendem contradizer com números a realidade das ruas e dos casebres. Sobre a sem-vergonha com que políticos e funcionários cuidam primeiro dos seus interesses pessoais, depois se divertem, gozam, e finalmente fingem tomar a peito os cuidados da res publica.
Porque o rosário de desgraças a fatigasse, a luz triste lhe causasse
outros pensamentos, ou simplesmente porque tal curiosidade de certo modo
tivesse cabimento, você de repente quis saber se eu acreditava em Deus. E eu,
tal um político surpreendido em momento crítico, esquivei-me com uma dessas respostas
sofísticas que são o equivalente verbal da cortina de fumo – e fui adiante com
a história do meu povo.
Acontece que quando alguém quer saber o que penso sobre a existência do Altíssimo, a minha reacção é muito semelhante à de quem sente ameaçada a sua privacidade. Não que a sua pergunta fosse ilegítima. Bem ao contrário. Na sociedade descontraída em que vivemos todas as curiosidades são permitidas. É mesmo pelo jogo das confissões mútuas que hoje se mede o grau de simpatia ou apreço. O retraimento, a formalidade, a discrição, raro são sinónimo de comportamento apreciado, antes surgem como marca de um obsoleto romantismo.
Acontece que quando alguém quer saber o que penso sobre a existência do Altíssimo, a minha reacção é muito semelhante à de quem sente ameaçada a sua privacidade. Não que a sua pergunta fosse ilegítima. Bem ao contrário. Na sociedade descontraída em que vivemos todas as curiosidades são permitidas. É mesmo pelo jogo das confissões mútuas que hoje se mede o grau de simpatia ou apreço. O retraimento, a formalidade, a discrição, raro são sinónimo de comportamento apreciado, antes surgem como marca de um obsoleto romantismo.
A confissão, o estendal de mazelas, aberrações, os vícios,
isso é que vale a pena. E quanto maior o detalhe, mais valiosa a confissão,
mais intenso o contacto. Suponho até que, não possuindo vício que as distinga,
e querendo evitar que as julguem menos ou desinteressantes, certas almas não
resistem ao pecadilho de se inventar deformidades e falhas. Nesse
particular das confissões eu vivo francamente no passado: não as faço em
público. Se, porque postos em letra de forma, alguns aparentes momentos do meu
ser e do meu sentir dão uma impressão de confidência, isso não passa de recurso
literário. A intimidade é para ser guardada e, excepcionalmente, oferecida em
pequenas doses àqueles que a sabem receber e podem apreciar. O íntimo, a
própria palavra o diz, é o que está muito dentro. Insistir em exteriorizá-lo,
em torná-lo acessível a qualquer, toca o paradoxo. Além de ser signo de uma bem
estranha ânsia.
Com estas considerações todas, quase ia esquecendo o que lhe
queria dizer sobre a questão da existência do Todo--Poderoso. Pouco adianta que
uns garantam que mora no Céu e aguarda mal-humorado o dia de nos julgar. Ou que
outros afirmem, convictos, que tudo é poeira cósmica. A falar verdade, a partir do momento em que nos pomos perguntas para
as quais não há resposta, caímos sem perdão sob a alçada dos dois poderes que
mais eficientemente nos torturam: o medo e a dúvida.
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Faleceu hoje Fernando Sanches,
meu amigo de muitas décadas, conterrâneo e ilustre músico. É à sua memória,
porque com ele muitas vezes falei do medo, da dúvida e do nosso passado, que repesco
este texto de Mazagran (Quetzal, 2012).