Mesmo com caridade cristã e
passando a esponja sobre o seu desagradável carácter, é difícil estar à
conversa com o Fernando sem que duma maneira ou doutra ele a não termine aos
berros e a gesticular ameaças, embora raro se compreenda o que dispara tanta
fúria. Assim, sendo ele como é e nós convencidos de que aquilo não tem remédio,
aguenta-se a sua maneira, aceita-se o Fernando como parte do folclore da
amizade e se se fala dele quando não está presente usa-se a alcunha de “Fura
tripas”.
“Fura tripas” é ironia, porque
embora grite e faça espalhafato não é de violências, bem ao contrário, no
dia-a-dia todo ele é pachorra, acentuada pelo metro e sessenta e seis de
estatura e os cento e vinte quatro quilos do arcaboiço, o que faz com que, como
já disse um gracioso, o Fernando não caminha, rebola.
O seu berreiro é de muito vento pouco
movimento, no fundo talvez seja a maneira de esconder a natureza de tímido e compensar
a realidade de uma clássica submissão matrimonial, em que no dizer das más
línguas o mantém a D. Guadalupe, que mau grado o nome de santa e quase anã na
postura, consta que entre as quatro paredes o trata de uma maneira que alguns
já compararam à das domadoras que no circo trabalham com elefantes.
Ninguém viu, pode ser só falatório,
maldizer, porque avessa a intimidades e seca de maneiras D. Guadalupe não é
popular, nem se lhe conhecem amizades na vizinhança. Asturiana de maus fígados
e sem papas na língua, além de usar um linguajar muito seu tem aquele modo
desagradável de tratar a todos por tu e, sem desculpas nem explicações, se a companhia
lhe desagrada não é de adeusinhos, simplesmente vira as costas.
Talvez tenha sido por isso que
inventaram a fábula de que mandava no “Fura tripas”, pois na rua pareciam demonstrar o contrário, sempre
a dar provas de verdadeiro afecto. Caminhavam de mãos dadas e ela, que não lhe
chega ao ombro, de cabeça erguida e muito encostada, feita criança que pede
protecção, sorrindo agradecida das carinhosas pancadinhas no rabo e
chamando-lhe “morcón”.
Infelizmente, é lei do mundo que
não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, e neste tempo em que é quase
obrigatório pertencer a uma tribo e odiar os que ficam de fora, pouco é preciso
para que a desavença entre num casal e a harmonia acabe.
Cala o “Fura tripas” a razão e
também não conta se a Guadalupe foi de vez para as Astúrias ou espera que volte,
mas descobrimos que fica histérico se falarmos de dietas ou do que as mulheres
agora exigem.