A recordação vem sem ser
chamada, há ocasiões em que se sente como quando era miúda e ia ao cinema para
ver os filmes - ela ainda diz “as fitas” – que não eram tão bonitos como agora, mas por
qualquer razão lhe pareciam mais verdadeiros. Devagarinho iam-se apagando as
luzes, ficava tudo às escuras e de repente tornava-se personagem, era ela quem vivia
aquilo, sentia-se desnorteada quando a história chegava ao fim e as luzes
voltavam a acender.
Está virada para a televisão, mas
é só pelo ruído, o que lá mostram não lhe interessa e os seus olhos também pouco
distinguem. Desde que o Jerónimo faleceu senta-se no cadeirão ao pé da lareira,
o cadeirão que para ele tinha sido trono de rei e senhor, mandando dali com
grunhidos ou sacudidelas dos dedos que exigiam presteza e obediência, fosse
para lhe trazer o correio, os comprimidos, a camisola, ou só para que se
aproximasse, despedindo-a com outro aceno, esquecido do que pedira, algumas
vezes num berreiro de doido, não fosse esquecer que ali ainda era ele quem mandava.
Com a pinguita de vinho e o
calor da lareira vem-lhe a modorra, começam as visões, é como se voasse no
tempo, revive cenas que julgava esquecidas, mas logo desperta em sobressalto na
confusão de ter duas vidas, aquela em que envelheceu e uma segunda em que se
desconhece, onde havia esperança, o tempo não passava, ela para sempre a
Margarida de vinte anos e um futuro de alegrias.
Sabe por demais que aquilo não é
sonho mas o remorso de se ter sujeitado, escolhido a submissão, sofrendo não
ter filhos, perdida a conta dos desmanchos, ele a assistir para ter a certeza
de que o não enganava. Escolheu vergar-se, nunca lhe quis mal e são sinceros os
padre-nossos que reza pelo descanso da sua alma, só se pergunta que praga lhe
rogaram para que tivesse de ser assim o seu destino, aos olhos do mundo sem
razão de queixa, penando um vazio como só conhecem os que aceitam viver na
sombra, sem vontade própria e normais na aparência, mas movidos pelos
cordelinhos que os tornam fantoches, obrigados ao sorriso que trai a cobardia.
Os anos e a fragilidade
fazem-lhe sentir que o fim não deve tardar, mas a morte não a assusta, tão-pouco
receia o que a aguarda na vida eterna em que acredita, mesmo que tenha de pagar
por ter escolhido viver sem vontade própria. Medo de verdade, tão grande que a
asfixia, é o que sente de manhã ao
acordar, sabendo que não escapa ao tribunal que tem dentro de si e a obriga a
ouvir a acusação, mas nunca lhe lê a sentença.