À maneira de bilhete para um amigo que por razões suas o não quer ler mas sobre ele tem opinião definitiva, fica aqui este excerpto de O Meças.
"Estes dois, que em noite de
grande calor e fraco luar se sentam num penhasco, mudos, costas
voltadas e cabeça baixa, trazem horas de caminho, há muito
estariam ali não fosse o terem
vindo aos bordos, mais as vezes
que se encostaram a golfar, ou arriando as calças por não
segurarem a tripa.
Têm pela frente meia légua plana
de searas, uma descida de mau piso e muitas voltas, o
riacho, a calçada que levará cada um a sua casa. Por enquanto
arrotam, peidam, repetem o vómito.
um cai e fica de bruços, o outro
escorrega do assento mas consegue firmar-se, desaperta a
braguilha, tropeça, cambaleia, avança para o camarada e,
vagaroso, mija-lhe por cima. Riem
ambos, engalfinham-se aos murros
de bebedeira, não sentem se os dão ou recebem,
empurram-se e caem às arrecuas, adormece um contra o pedregulho, o outro
na poça de mijo.
Desde miúdos une-os estranha
afeição, constantemente a procurar-se, sofrendo se se não
vêem. Cresceram maldosos, bons na fisga e nas armadilhas,
ágeis que nem macacos a roubar no cocuruto das cerejeiras os
ninhos da passarada. Feitos homens, acasalaram, geraram,
menos ligados à família que ao sentimento que constantemente os
faz procurar-se no trabalho ou na folga. assentaram praça
juntos. Cumprido o tempo, festejaram com uma carraspana de
três dias, vencendo a que usavam tomar na festa do
padroeiro.
Acordam e ainda é noite. Não se
encaram nem falam, sofrem o ar morno, limpam o suor às
costas da mão. Lado a lado, o passo mais
seguro, viram da rodeira para o atalho. Na descida vão em fila,
às vezes escorregam na caruma dos pinhos e embatem um no
outro, empurram-se de marotice,
o que primeiro a vê desata a
correr e salta para a ribeira, que ali faz poço.
Embora a água só dê pelo peito,
braceja a fingir que nada, sem tempo para se desviar quando
o companheiro lhe cai em cima de trambolhão, ambos a
perder o pé, a afundarem-se com
o peso da roupa encharcada.
Voltam à tona agarrados pelos
braços, sem saber porque se encaram assim, que sentimento
é aquele, delícia e maldição, gozo, praga, precipício.
Beijam-se com a sanha de cachorros que mordem, e empurram-se,
voltam a agarrar-se, as bocas de novo se procuram. Socam-se,
esgadunham-se, outra vez se beijam e acarinham, repousam a cabeça
no ombro do outro, esgotados de forças e de sentir.
Os galos tinham cantado, a luz
era de alvorada, saíram da água que lhes tinha sido
esconderijo, insensíveis ao desconforto, incapazes de fala, evitando
olhar-se, como se por momentos tivessem encarnado e agora,
contrafeitos, contra vontade, se vissem despojados do sonho.
Atacaram a subida exagerando o
cambalear para que os julgassem ainda bêbedos,
fingindo não ouvir as boas-horas que lhes davam um ou outro que ia
cedo a caminho da horta.
Separaram-se no fontenário, sem
palavra nem aceno, dois estranhos que se viram costas.
Nunca mais falaram no caso, morreriam ambos na ilusão de que
com eles se enterrava o segredo."