sábado, novembro 23

A bela franqueza


­­Ah! Aquela maneira como o Nataniel abre os braços, encara a companhia num modo de desafio e grita como se o tivessem insultado: - Que me digam se há por aí alguém mais sincero e mais directo do que eu! Venha o nome!
Aquilo é teatro, mas estamos entre amigos, ninguém o vai contradizer nem lembrar que de memória de gente nunca se lhe ouviu uma resposta que não venha embrulhada em tantos apartes que o que perguntou desnorteia e muda de assunto.
Um exemplo. Há-de haver três ou quatro anos herdou umas centenas de hectares plantados de oliveiras e um lagar de azeite, o que nele, burguês citadino, causou uma mudança de interesses, mas lhe dá também oportunidade de brilhar no papel de latifundiário e industrial, entretendo-nos com as peripécias da colheita e o fabrico do azeite.
Com amigável maldade, nessas ocasiões gostamos de o acirrar, porque sabemos que o seu carácter lhe impede a franqueza de que tanto se orgulha.
- Então, que tal foi a colheita este ano? Quantas toneladas?
- Mais do que o ano passado.
- Mas quantas?
- À volta de trezentos por cento mais. E para o ano há-de ser ainda melhor.
É pena perdida querer continuar, porque se acaba sempre no empate em que ele não dá resposta, mas continua a jurar que ninguém, absolutamente ninguém, é tão franco, de modo que para não estragar o ambiente muda-se a conversa seja para o que for, o tempo, a gasolina, o Chega, tudo menos assunto em que tenhamos de suportar a bazófia da sua imaginária franqueza.
No mais é bom rapaz e muito se lhe perdoa, já lhe chega o martírio de em segundas núpcias ter casado com a Gabriela, vinte e quatro anos mais nova, carinha de anjo a esconder mulher de pêlo na venta, o que ele descobriu quando já não havia remédio a dar. Mas não lhe perguntem como vão as coisas lá em casa, porque depois de um alegre “Tudo bem” que a expressão seu rosto contradiz, tossica e volta a falar do azeite, cortina de fumo que de verdade nada esconde,  todos sabemos que se dão pior do que cão e gato, as mais das vezes é ela, na força da vida e treinada em artes marciais quem leva a melhor.
O Gonçalo, tagarela-mor, estava de turno nas Urgências e já nos tinha contado, mesmo assim foi um pasmo vê-lo, tal um guarda-redes de hóquei, a cabeça apertada numa aparelhagem de ferros, o olho esquerdo negro e inchado, o queixo preso com grampos de metal.
- Então que foi isso?
- Escorreguei na escada do jardim, caí por ali abaixo e podia ter morrido, porque aquela escada é um perigo. Valeu-me a Gabriela estar em casa.