A História vem por vezes ao nosso encontro de maneira bizarra,
deixando-nos atarantados e a temer que andemos menos alerta do que julgávamos
para o que nos rodeia, e que muito nos escapa das razões de certas vidas.
Foi há meses, mas ainda não me refiz de como uma
simples frase, murmurada durante uma missa de corpo presente, tenha desencadeado
tal enxurrada de patifarias, encrencas, traições, cornos postos, roubalheiras,
sangue derramado, tudo isso e mais, ele dando saltos no tempo, ora falando da
República em 1910, da Grande Guerra, de Salazar e das Colónias, ora retornando à
origem da fortuna que o defunto, ali a dois passos, herdara do avô.
O lugar não era o mais propício para a conversa, pelo
que depois do funeral e como estavam a ser horas, fomos jantar, ele perplexo de
que eu, muito mais velho, me mostrasse tão ignorante das Franças e Araganças do
falecido conterrâneo, de como em três gerações a família do dito tinha saltado
do palheiro para o palácio.
Porém, o que o fazia pôr em dúvida a minha
sinceridade, era o pasmo com que eu reagira, quando ele na igreja me tinha
sussurrado que o avô do Sebastião só chegara aonde chegara por ter dado o tiro
na Cruz.
- Palavra que nunca lhe contaram? – insistia ele, com
uma expressão em que misturava a descrença, a desconfiança, talvez até o receio
de que a idade me tivesse afectado a memória. Por fim consegui convencê-lo, e
ele, olhando em volta a assegurar-se que por ali não havia conhecidos,
aproximou a cadeira, baixou a voz para contar que por volta de 1909, ainda
soldado raso em Lisboa, o Abílio Perneta, avô do nosso defunto amigo, arranjara-se
para cair nas graças do Afonso Costa, então figura de peso, e esse o tinha levado
para a Maçonaria.
- Foi como se lhe metessem um foguete no cu! Sargento,
capitão, coronel, na Grande Guerra chegou a general e podre de rico. Claro que
se desconfiava, mas se não fosse o enfarte o segredo teria ido com ele para a
cova. É que ao ver-se nas últimas disse à mulher que corresse a fazer uma
promessa à Virgem, porque lhe pesava um grande pecado. Uma noite tinham-no levado
para uma sala onde estava um crucifixo muito grande, e aí, nu em pêlo, um
avental de couro a tapar-lhe as partes, meteram-lhe um revólver na mão para que
desse um tiro no Cristo. E ele não tinha dado só um, mas três ou quatro!
A mulher foi-se confessar, depois deve-se ter aberto
com alguma comadre e assim se veio a saber. Agora que você diga que nunca lho tinham
contado é obra, custa a acreditar!