Foi apenas um
exercício de escrita. Depois a vida passou, muito aconteceu, mudou-se o palco,
mudaram os actores, as palavras ganharam outro sentido, mas aqui e ali alguém
saberá interpretar.
É contigo
que falo, me abro, deixo entrever boas e más horas, te mando em código
sentimentos, abjurações, raivas e alegrias. É para ti que componho frases onde
tudo está, e tudo se esconde, a aparência mascarada de realidade, o acontecido
embrulhado em fantasia, o eu tantas vezes multiplicado que não reconheço a
própria sombra e desconfio que não seja minha a voz que julgas ouvir.
Falo-te, e
contudo não existo, nem sequer como me imaginas, porque a todos os momentos me
refaço. Escondo e escondo-me, reapareço, invento-me, iludo-te com palavras, e
elas, fazendo ricochete, transtornam a imagem que de mim formas, a do espelho
em que julgas ver-me e onde nunca estou.
Falo, tu
escutas. Parece realidade e é só aparência, distância, sonho, a bela ilusão do
possível que nunca acontece, o poder volátil do desejo tonto. Enfio palavras
como contas num rosário de orações, sem credo nem sentido, ignorando que música
te farão ouvir, ou se de alguma dor sentirás alívio.
São só
palavras, migalhas de mim, sacudidas com fingido descaso, mas na esperança de
que, se as apanhares, te dêem a ilusão de que estivemos a falar e nos
compreendemos.