Sofrer da “veia”
Todos conhecemos horas em que
se dão coincidências de tal maneira absurdas, que mesmo o descrente empedernido
sente abalada a sua certeza de que não há Céu nem Inferno, nem mistérios no
Além.
Deve ter sido há cinco ou seis
anos que recebei um envelope tarjado de preto com a notícia do passamento do Hirondino
Manga. Num automatismo hipócrita mandei flores e desejei paz à sua alma, mas não
fui ao enterro, creio mesmo que nesse momento comecei a safá-lo da memória.
Isso porque além de fala-barato, o Manga era um picuinhas da pior espécie, um que
tudo sabia, tudo recordava, logo azedo quando se lhe corrigia um disparate ou
se discordava das suas ideias.
Bem sei que é injusto, certos detalhes
não devem contar para a opinião que se faz de alguém, mas tinha maus dentes,
usava um bigodinho à Hitler, e trazia as calças tão exageradamente vincadas que,
sendo ele de uma extrema magreza, dava a ideia de andar sobre duas tábuas.
Julgava-o esquecido de todo,
quando uma tarde na esplanada olho distraído as andorinhas que voam por ali, ocorre-me
que em francês se lhes chama hirondelles,
estou ainda a pensar sobre qual das duas palavras soa melhor, quando me tocam
no braço e vejo diante de mim D. Luísa, a inefável viúva do Hirondino.
Ficamos
à conversa, dois idosos a falar do que era, e de facto nunca foi, mas há conversas
que são menos diálogo do que convenção, a tudo digo que sim, então tudo era melhor,
muito melhor, abano tanto a cabeça a concordar que me dou conta que exagero.
-
Salazar faz muita falta. Quem viveu nesse tempo é que sabe. Havia decência,
moralidade, respeito, cada um conhecia o seu lugar.
Aceno
de novo, franzo os lábios, mantenho o sério de circunstância.
- E
o 25 de Abril terá feito algum bem, trouxe as pensões, mas este venha a nós, a
roubalheira!
O
meu gesto repete a concordância e ela salta para os malefícios da televisão, as
porcarias, as poucas-vergonhas, fosse noutro tempo iam parar à cadeia. Suspiramos ambos, olhamos em redor, tenho
ideia de que como afabilidade já chega, tusso a preparar a despedida, mas ela fala
ainda da solidão, das noites sem fim, de como ele era bom e carinhoso, levava-a
ao cinema, iam de férias.
Sinto
a atenção diminuir, sobressalto ao ouvi-la dizer que quase até ao fim teriam
tido "vida sexual", não fosse o ele ter começado a sofrer da
"veia".
Suponho
problemas de varizes, da circulação, mas ela adivinha que me engano, e com um
desembaraço que desdiz a sua repulsa da modernidade aponta os olhos à minha braguilha.