Tinha à volta de cinco anos quando
o meu Avô paterno me ensinou a ler e o vício da leitura ficou, verdadeira droga
para que não desejo cura. Num passado distante o ritmo dos chutos era dum ou
mesmo dois livros por dia, mas há muito
baixou, se bem que a semana raro acaba sem ter lido pelo menos três.
Não esperem agora de mim um
sermão sobre os superiores benefícios da leitura, ou o queixoso azedume de que
a imensa maioria não lê nem se interessa por livros, pois só um tolo ignora que
a leitura é um luxo que exige dois bens sempre escassos: tempo e paz de
espírito.
Remediado no mais, nesse
particular de tempo e paz de espírito continuo abonado, de modo que uma parte
substancial do meu dia vai para a leitura, e de folhetos à Odisseia, de autores
suecos com nomes arrevesados ao sabido
Murakami, do Borda d’Água ao Mensageiro de Bragança, se tiver letras e me vier
à mão, leio.
Aprendo, divirto-me,
emociono-me, às vezes zango-me, barafusto, mas a semana passada, quando abri O Anjo Pornográfico – a vida de Nelson
Rodrigues, de Ruy Castro, foi como se me tivesse calhado a sorte grande,
pois há muitos e longos anos não lia um livro que me transportasse para aquele
bendito estado de espírito do entusiasmo e da perplexidade da adolescência,
quando o tempo pára e, à medida que lemos, somos em simultâneo espectador,
personagem, vestimos todas as peles, vivemos todas as emoções.
Dizem os que sabem, que a
cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante, paráfrase
que se pode aplicar à vida de Nelson Rodrigues, à qual nenhum ingrediente
parece ter faltado, e todos lhe foram servidos em generosas porções: pobreza,
amor, dinheiro, sexo, fama, amizade, êxito, gratidão, doença, tragédias, medo,
traições, desastres, teatro, futebol, romances escritos, romances vividos,
quase cegueira, generosidade, coragem, rasgos de loucura. E tanto mais que ao
fim de três dias, lida a última das quinhentas páginas, custou a recompor-me
daquele terramoto de extraordinárias
vivências, inseguro se teria sido apenas a leitura, ou a mágica da escrita
realmente me transportara no tempo e no lugar, fazendo-me testemunha ubíqua e
privilegiada.
Voltando a mim, dei conta de que
já não estava no Rio de Janeiro mas na minha aldeia, com montes ao redor e o
ladrar dos cães único sinal de vida. Foi então que mentalmente agradeci a Ruy
Castro o belo livro que escreveu, e rezei para que a alma de Nelson Rodrigues tenha
encontrado no Céu a paz que lhe faltou na Terra.