terça-feira, fevereiro 12

Cada um é como nasce


Cada um é como nasce
É o feitio que Deus lhe deu, nada a fazer, e nós, que lhe temos amizade, ouvimos o Zé Miguel com paciência, desculpamos os seus exageros e certezas, mas devemos confessar que, mais do que qualquer um de nós, possui ele o raro talento dos que, quando contam uma história, conseguem prender a atenção do princípio ao fim.
Desta vez começou por perguntar se nos lembrávamos aquelas fotografias de  astronautas livres da força da gravidade, de cabeça para baixo e sem cair. Acenámos que sim, o Moreira recordou que quase tinha sentido isso em Angola, uma vez que o avião caiu num poço de ar. Eu próprio ia falar dum caso semelhante passado comigo, mas o Zé Miguel fingiu não ver, é o feitio dele que quando está no púlpito não aceita que o interrompam.
Contou então que estava uma noite sentado na cama, e de repente, sem mais nem menos, no quarto desatou tudo a rodar, as paredes, o tecto, a cama, o armário, para cima, para baixo, às voltas, uma coisa de meter medo. Quis levantar-se e caiu redondo, fechou os olhos, mas aquilo não parava, era mesmo de arrepiar.
Jura que não é medroso, nem acredita em bruxarias, mas num caso assim uma pessoa fica sem certezas, e quando de repente tudo voltou ao normal esteve um bom bocado a perguntar-se o que teria sido. O que logo lhe ocorreu e deixou preocupado, foi que bem poderia ser ataque ou algum tumor no cérebro, como o que deixara o tio paralítico, e isso …
Fez uma pausa, a criar suspense, e foi então que o Isaías, sempre a desdenhar, mostrou o telemóvel: - Fui ver ao Google. Tumor nenhum, é uma coisa dos ouvidos, chama-se vertigem posicional paroxística benigna. Digamos que é uma tontura e passa logo. Não tem perigo.
Com gente mais serena a conversa iria continuar, mas como o Isaías tem aquele desgraçado feitio de querer ser sempre o mais esperto, e o Zé Miguel, começando a contar seja o que for exige atenção e não admite interrupções, caiu ali um silêncio de mau agouro. O Bernardino ainda quis remediar a situação, perguntando se era coisa que tinha cura, mas ninguém lhe respondeu, e depois duma ou doutra banalidade foram-se despedindo.
Fiquei eu e o Zé Miguel, ambos calados, ambos com um sentimento de desconforto, até que ele, sombrio, quis saber o que eu pensava da victória de Bolsonaro.
Encolhi os ombros, a fingir desinteresse, mas de verdade à cautela, porque o Zé Miguel, além de não gostar que o desdigam, em questões de política é como ele próprio diz, uma fera, e o seu partido o único bom. Ai de quem for contra.