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Se lhe viessem dizer
que tinha acontecido a outro, por exemplo ao Sebastião da garagem, porque a
mulher andou no psiquiatra e esteve uns tempos internada, iria acreditar. Ou
com a Amélia do Bexiga, que essa, às vezes por uma coisa de nada perde a cabeça
e ninguém a aguenta. Agora a Lucinda? Em trinta e sete anos de casados, se
fosse a contar teriam tido no máximo três, quatro zangas, e mesmo que
procurasse seria incapaz de dizer porque tinha sido.
Nunca foi homem de
medos, ou de se pôr a magicar, mas verdade é que desde então, sem querer, como
se temesse uma ameaça, olha-a de lado. Também não gosta de ver a maneira como
ela ultimamente arranja as pescadinhas ou as fanecas sobre a tábua, na banca da
cozinha, e de um golpe lhes corta as cabeças.
A Francisca e o
genro tinham avisado que não poderiam vir, o Chiquinho estava com febre, receavam
que fosse sarampo, então ficava para a outra semana.
Por isso, nesse
sábado, tinha sido o almoço de costume quando estavam sós: caldo verde, bifes
de cebolada, arroz doce para ela, para ele uma laranja, porque anda preocupado com os diabetes e o colesterol.
Depois uma banana, "pra tapar o buraco".
Falavam pouco,
olhavam desinteressados para a televisão, um programa qualquer, daqueles
americanos com riso enlatado, uma história sem pés nem cabeça, uma sogra e um
genro, ambos polícias, que se davam mal com a vizinha, uma cabeleireira amigada
com o dono de um restaurante. Depois, sem uma palavra, arrumaram a loiça na
máquina, ele acendeu um cigarro e, hábito de sempre, saíram para um cafezito no
"Bernardo".
Dormiram a sesta.
Cumpriram o ritual de um chá com bolachas, ela disse que ficava na sala, porque
queria ver outra vez o programa da bicharada em África, ele foi para o quintal
a podar os rebentos da oliveira.
Tinha a impressão
de que estava ali há coisa de meia hora, quando a viu apressada a descer as
escadas, direita a ele. Mal disposta, pelos jeitos.
- Ouve lá, também
deitas a língua de fora nas minhas costas?
- O que é que te
deu?
- Como o gajo na
têvê? Puseste-te a rir, mas digo-te uma coisa...
- Não dizes nada.
Cala o bico.
Ia baixar-se a
apanhar os galhos, mas parou ao vê-la aproximar-se, desfigurada, a boca torcida
num ricto de demência.
Frente a frente, ele
segurando a tesoura, ela com as mãos escondidas sob o avental. Ficaram assim um
longo momento, até que, resmungando qualquer
coisa, ela lhe virou as costas e desapareceu na cozinha.
Começara a
anoitecer quando a ouviu gritar que a ceia estava pronta.
...
Publicado na DOMINGO CM.