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Durante uns vinte anos
fui cliente fiel do senhor Mayer. Quando ele se reformou e a garagem mudou de
proprietário, mudei também, porque nem o serviço se comparava, nem se sentia
ali a presença das pequeninas coisas que são o íman da simpatia.
Uma vez por outra,
ao acaso de uma vistoria ou de um contratempo na garagem, recordo a competência
do senhor Mayer e do seu pessoal, todos animados por um admirável espírito de
equipa e a obsessão fanática de resolver as avarias mais complicadas. Mas o tempo
passa, a memória esvaece, as pessoas desaparecem aos poucos na sombra do
passado.
Dessa sombra saiu
o meu saudoso garagista dias atrás, quando abri o jornal, e pela milionésima
vez me surpreenderam as voltas do
Destino.
O senhor Mayer mantém
viva a paixão pelos carros, e para se entreter, mas também para provar a sua
competência mecânica, pelas próprias
mãos construiu ele um, tão excepcional que causa admiração nas exposições. Mas
o que vem agora ao caso não é o seu
talento, sim a sua história de menino.
Tal como eu, em
1942 tinha ele doze anos. A família, muito pobre e judaica, vivia no terror
permanente de ser deportada, desde que dois anos antes os alemães tinham
invadido a Holanda, prendendo os judeus e levando-os para os campos de
concentração.
O Destino intervém
na manhã em que a mãe o manda ir à mercearia, e os vizinhos, no momento em que ele
regressa não o deixam passar, porque logo adiante os alemães procedem a uma
razia dos judeus. O miúdo vê os pais, a irmã e os avós desaparecer num camião, conta
agora que, como que num estado segundo, não sentiu medo, nem sequer estranhou
que os vizinhos, em vez de o ajudar lhe dissessem que fugisse.
Nessa noite e muitas
depois dorme em vãos de escada, come o que rouba nas lojas, mas arranja trabalho como aprendiz de serralheiro. Ao
receber o primeiro salário descobre que, sabendo-o judeu e à mercê da sua
denúncia, o patrão não é honesto. Procura outro. Depois outro. E aos poucos vai
aprendendo: serralheiro, bate-chapas, mecânico, até que, a guerra há muito passada,
finalmente tem o bastante para ser patrão.
O jornalista quer
agora saber se o senhor Mayer sentiu muito a falta da família, se lhe custou.
- É estranho, mas
depois daquele terrível momento nunca mais pensei neles.
- Nunca?
- Só uma vez. No
dia em que abri a garagem disse comigo que gostaria que o meu pai pudesse ter
visto aquilo.
O medo, a força de
vontade, o Destino, o instinto da sobrevivência, quantas serão as forças que
nos empurram? Quais serão as que nos salvam?
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Publicado na DOMINGO CM