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"Dependesse de minha mãe, a história do mundo seria uma incógnita. Ainda estou para encontrar alguém que se lhe compare na capacidade de esconder, fintar perguntas, encolher os ombros, ou com um gesto de desprezo reduzir a curiosidade alheia, em particular a minha, a uma forma de inconveniência.
O estranhamente pouco que sei das suas circunstâncias e
das minhas próprias na meninice, descobri-o à custa de rezingar e daquela
teimosia de que as crianças têm o segredo.
Embora lhe quadrasse, por respeito nunca me apropriei do
dito que uma vez lhe ouvi a propósito de uma vizinha, que de tão reservada dava
ideia de que para se saber dela alguma coisa "era como ter de se lha tirar
do cu com um gancho".
Serviu e amargurou, de certeza mais que dobrado, pois sensibilidade
tinha de sobra, mas a salvação deve ter-lhe vindo da teimosia do carácter e da
ideia fixa de que ninguém seria capaz de lhe "pôr o pé no cachaço",
expressão que às vezes debitava como se estivesse defronte de um adversário e
pronta a atacar.
De longe a longe, cauteloso por lhe conhecer o feitio e
temendo os seus repentes, a violência de que era capaz, pois não se ensaiava
para me derrear, eu punha entre nós a distância precisa e voltava à carga:
- E então pra onde é que foi servir a primeira vez?
Quando era miúda.
Há olhares que fuzilam e há olhares, como o dela, que
levam a acreditar que no fundo resta em nós algo de selvagem, algo da fúria primitiva do bicho a que um dia
pertenceu um ou outro dos nossos cromossomas.
Nessas ocasiões os olhos de minha mãe ganhavam a fixidez dos
da pantera pronta ao ataque, dava ideia de que tudo nela era tensão, o seu
propósito um só: estraçalhar."