(Arti et Amititiae - Clique)
São sem conta as maneiras
de arruinar um jantar, e o que devia ser um civilizado convívio de gente de
boas maneiras resulta, por vezes, numa desagradável refeição.
Ao anoitecer de 6 de
Outubro de 1998, num restaurante italiano de Amsterdam, sentavam-se à mesa José
Saramago; a baronesa Chantal d'Aulnis de Bourouil, directora de Meulenhoff, a editora holandesa de
Saramago; Laurens van Krevelen, antigo director da mesma, bom amigo que se
arriscara a publicar Com os Holandeses;
Ray Güte-Mertin, celebrada agente literária alemã; e este que assina.
A mesa era redonda. José
Saramago, que já antes notara que Ray Güte-Mertin e eu nos calhávamos menos que
pouco, sentou-se entre nós, tomando a si a função de pára-choques. De nada
adiantou, pois o que eu afirmava, dirigindo-me a um dos outros convivas,
rebatia-o ela com azedume. Defendia a senhora uma ou outra ideia sobre a
literatura portuguesa, caía-lhe eu em cima ridicularizando o seu ponto de vista.
Saramago ouvia sem
intervir, os anfitriões faziam o possível por desviar a conversa para a
probabilidade dele, dois dias depois receber o Nobel e, despachada a sobremesa,
bebido o café, desfez-se a companhia. A alemã despediu-se dos holandeses, de
Saramago, e fazendo o que eu já tinha feito,
voltou-me as costas.
-E agora? – perguntou
Saramago.
A noite apenas começara,
estava serena, fazíamo-nos boa companhia, e como se alguém o sussurrasse do alto ouvi-me a dizer:
- Vamos homenagear a
"Ramalhal figura".
Concordou ele, e porque
era mesmo ao lado, começámos por visitar Het
Begijnhof, o retiro de beguinas que data de 1389 e é ali um oásis de paz.
Seguindo Ramalho, aquando da sua visita à cidade, onde então se realizava a Exposition
Internationale & Coloniale, fomos pela Kalverstraat, desembocámos na Praça do Dam e, logo ao lado, entrámos como ele no Wijnand
Fockink, diminuto espaço onde desde 1679 se bebe licor ou genebra e, por
tradição, se enchem os copos tão à borda que o cliente tem de se curvar para
chupar o primeiro gole.
O prédio vizinho é agora
hotel de luxo, mas em 1883 Ramalho Ortigão maravilhou-se com o Jardim de Inverno do que então era café
e mantém o nome de Krasnapolsky. "Vinte
bilhares, lugares para duas mil pessoas, iluminação a luz eléctrica e grande
orquestra às horas de jantar". Demos uma vista de olhos ao que continua a ser
uma sala espectacular e, de novo na praça, deixando perto os canais de boa e má
fama, rumamos castamente pelo Rokin.
Parámos no cruzamento
dessa avenida com a Spui, julgando o
futuro Nobel que nos despedíamos ali. Assim não foi, porque enquanto deambulávamos
me tinha ocorrido a possibilidade de terminar o passeio, se não en beauté, pelo menos de modo a que José
Saramago guardasse dele boa memória. E guardou, como com uma pontinha de emoção
gravemente disse, quando horas depois nos separámos e eu lhe desejei boa
estadia em Frankfurt.
Explicando: em meados de
1976, com dois livros publicados na Holanda, um de inesperado êxito e outro que me marcou com o
ferrete de "inimigo do povo e traidor da Revolução", surpreendeu-me o
convite de me tornar sócio de Arti et
Amititiae, sociedade de intelectuais e artistas fundada em 1839, um pouco
no género dos clubes londrinos, com razoável restaurante, boa conversa, excelente bar e, ao invés desses outros, com
companhia feminina.
Quando lá entrei a
primeira vez esperava-me uma surpresa: dando-me boas-vindas, o presidente anunciou-me
ser eu o segundo sócio português. O nome do primeiro, feito sócio honorário em
1883, era de difícil de pronúncia, mas ia mostrar-mo no livro de registos que
eu acabava de assinar. De facto, ao abrir no ano correspondente, lá estava,
robusto e floreado o autógrafo de José Duarte Ramalho Ortigão.
Isso contava eu a
Saramago, parados ambos no hall de entrada e, posso enganar-me, mas nele como
que dei conta de um ligeiro cepticismo. Entrámos, assinámos o livro de
presenças e sentámo-nos a aguardar que nos viessem atender. Havia bastante
gente, mas a algazarra tornou-se um murmúrio, quando uma senhora se foi sentar
ao piano da sala e, de certeza profissional, começou a tocar Bach.
José Saramago ouvia
calado, observando o ambiente, os lambris, os candelabros, as estátuas, os
sofás de couro. Os duzentos e tal quadros de mestre que Ramalho admirara, acham-se
na galeria do primeiro andar, a essa hora fechada, mas havia ali um vintena
deles, entre outros um retrato de Erasmo, lendo o seu Elogio da Loucura a Thomas More, uma Lição de Anatomia, de Rembrandt, de 1632; batalhas navais, retratos de burgomestres, um
de Herman Boerhave (1668-1738), médico famoso e mestre do nosso não menos ilustre
clínico António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783) natural de Penamacor e médico
de Catarina da Rússia.
- Então o Ramalho esteve
aqui?
A pergunta parecia
encerrar uma ponta de suspeita, e foi o que me fez levantar à procura do
gerente. Expliquei quem era o meu convidado e o que provavelmente ia acontecer
em Frankfurt, poderia ele fazer-me um favor? Trazer do escritório o registo dos
sócios?
A última memória que
guardo dessa noite é a de Saramago olhando à vez para o autógrafo da
"Ramalhal figura" e para mim, como que a perguntar-se se seria apenas
acaso o termos ido ali.
* * *
(*) Publicado no nr. 136 da LER