sábado, fevereiro 15

Lisboa 1967 - um tríptico

(Clique)
Com o título Lissabon este conto foi incluído na antologia Meesters der Portugese Vertelkunst (Mestres do Conto Português), compilada e traduzida em Neerlandês por August Willemsen (1936-2007), editada por Meulenhoff Nederland B.V., em Amsterdam, Setembro de 1970.
*  *  *
Oferecido auxílio às vítimas da região assolada pelo temporal. S. Exa. visitou, S. Exa. viu com os próprios olhos, apertou mãos, fez perguntas, os fotógrafos registaram a compaixão de S. Exa. e da Exma. Esposa.
Vai ser preciso mandar limpar o sobretudo presidencial chapiscado de lama. O  secretário tenta com o lenço, acocorado, aos pulinhos, S. Exa. não pára.

- E a sua mulher também? Coitado. Como se chama?

- Manuel.
- O nome todo - intima o secretário.
- Costa.
- Costa - ecoa o secretário.
- Ah! Costa. Manuel Costa. Muito bem.
Ao enxergar o grupo a Rosa Brejoeira deita o lenço pela cabeça, dá uma cotovelada na mãe para que se mexa - Ande, porra! Já estão a tirar os nomes! - corre para perder o fôlego, ajoelha-se, vai-se agarrar ao sobretudo, mas o guarda levanta-a com um safanão, Vens pr'àqui descalça? Põe-te a andar!
A mãe ouve mal e não compreendeu, vai atrás do Manuel, "um dos sinistrados a quem S. Exa. demonstrou especial carinho", amanhã na primeira página, com fotografia e tudo.
O Manuel aponta a ribanceira por onde a enxurrada desembestou, levando casas, hortas, o armazém do Nunes, a minha Maria, o Antoninho Coxo, e sorri, esquecido da dor verdadeira, o velho põe-lhe uma mão no ombro, Vossincelência num faz ideia, botámos a correr!
- Pobre homem!
A porta fecha-se, as motas roncam, S. Exa. acena. O regedor tinha apertado o Manuel para que falasse do telhado da igreja, e o sacana esqueceu-se.
- Então?
A Brejoeira olha, volta a olhar, não acredita nas mãos vazias do cunhado.

*  *  *
"Porque somos uma grande família". Somos. No Natal. Mas se alguém os tira do quente esquecem, não vão, mandam os pequenos como ele, e se der sarilho é contigo. Quem quer vai? Quem não quer... Sabedoria popular uma bosta! O Zé aprende depois dos sessenta, quando aprende, os pés na soleira do Eterno.
O barbeiro dá mais uma escovadela, arrastada, pró-forma, chamando a gorjeta, quer saber se "lá em cima", hein? Disseram-lhe que o Pereira, se não for desta, mais dia menos dia…
- Onde?
- Mas houve alguma coisa? - apertam-se as mãos, a moeda cai no bolso, tilinta nas outras.
- Uma vistoria.
-Foi o que ouvi dizer, mas com a força que tem ninguém lhe mexe.
Despede-se, acena, e vai a pé, o director só lá está às quatro – Mas o que é que vou dizer? – tira o casaco, desce a Avenida, um calor que até o alcatrão derrete, fedor dos autocarros.
"Agentes Secretos em Luta de Morte na Sibéria, Colorido, Maiores de 12 Anos, Vibrante Filme de Suspense e Acção Heróica!". No Politeama.
As paredes do Alcazar arrombadas a canhão, El general Moscardó de barba à Kaizer e monóculo. O Cine-Royal a chorar, plateia nesse tempo a três mil réis, pronto a alistar-se também se a bofetada do pai – "Eu é que te dou as guerras, palerma! – não lhe tivesse mudado o rumo. E razão tinha o velho, até dizem que o Hitler também fez coisas boas. A China. Agora é morra a China, depois é via a China. A gente sabe lá!...
- Imperial.
O empregado não responde, limpa o mármore, pergunta para dentro:
- Está aí o Mário do táxi?
As inglesas estacam à porta, hesitam, passam assustadas, ninguém as avisou,  Ó miss!, olhos revistadores, os reformados confirmam que também no tempo deles as francesas que vinham por aí… As mais das vezes nicles, garganta.
- Então essa imperial? Sai?
- Quem perguntou pelo Mário?
A beber, e quase se engasga, ocorre-lhe que na gaveta do Simões, antes de lhe dar o ataque, recibos, facturas. E não me lembrei! Ele há cada uma!
- Onde é o telefone?
Os olhos convidam-no a pagar antes de mostrarem a cabine atrás da porta. Conta o dinheiro, acrescenta cinco tostões e volta as costas.
- O senhor dá demais. Olhe que ainda empobrece.
- Pode guardar – e entre os dentes Saloio de merda! Não fosse por coisas dava-te um coice que até…
O outro levanta a tampa do balcão, avança: - O que é que o senhor disse?
O patrão agarra-o, leva-o de volta: - Deixa lá isso, Barbosa! Onde está o Mário?
Os fregueses entreolham-se, franzem os lábios.
- Está lá?... Cordeiro. Liga-me à secretaria, faz favor. Ó Mariazinha… O Cordeiro, filha! Sim! Chama o senhor Pinto. Uma voz esquisita? Eu?... Chefe! Lembrei-me da gaveta do Simões. Estão lá. Tenho a certeza. Foi em Julho. Antes dele ir para o hospital. Quer que volte, chefe? Já não é preciso?
Agradeceu e, com vagar, passou diante do balcão, parou à porta, só então acendeu o cigarro. Baforada à esquerda. A dar tempo ao filho da puta, se quisesse meças. Baforada à direita.
Nesse momento tocaram-lhe o braço e o corpo retesou-se-lhe, mas era o engraxador a pedir licença.
Rossio. Chiado. Rua do Ouro. Rossio. A mesinha da esplanada, a bica, um mar de gente…Yes, Merci, Jawhol, Yes, Tak, Merci…Procurou conhecidos que não via, desdobrou o jornal. "O cortejo saiu em direcção ao Largo do Carmo…" Estava a tempo, ia à segunda do Império. "Adultos. Technicolor. . Humor negro, branco e cor-de-rosa, num espectáculo faustoso e de sátira apimentada… Adoráveis Conspiradores c/ Dianna Rigg (a famosa Mrs. Peel da série da TV 'Os Vingadores') 18.30".
Fazia horas, bebia outra bica. Os recibos do Simões! Nunca mais se tinha lembrado dos estupores dos recibos!
Elas sentaram-se na mesa ao lado, e para que não se espantassem evitou olhar. Não precisava de bruxa, sabia, tinha de acontecer, hoje talvez! Agora! A fazer que não via o dedo que lhe ia tocar na manga, os olhos no jornal. "Conjura para matar Yasser Arafat.. Amã, 7…" Não se mexe, controlado, não olhes, não olhes, os nervos aguentam mal, o dedo hesita… Trinta anos à espera! Ó Brigitte Bardot! Ó revistas alemãs com elas na capa!
A unha roçou-lhe o braço.
- Yes?- britânico nada de Ièsse. Yes! E cara condizente, cara de habituado àquilo, de quem deita o anzol dos olhos, elas mortinhas por ferrar. Cara de farto.
E o bijuzinho diz assim: - Oh!
Um quarto de volta na cadeira, avaliação fulminante no frente a frente. A outra é   recheada, de perna curta, os cantos da boca traem um diferença de idade para mais. Escolhe, larga o sorriso - ouviu dizer e não esquece, as cobras também hipnotizam assim, com os olhos muito fixos - e atira-lhes outra vez: - Yes?
Ela sentiu, ataranta-se, estende o mapa, baixa a cabeça, de certeza com medo que aquela telepatia acerte no alvo. Se sabe o caminho para Belém. E gentil, doce, carinhosa, fache favorre, Béléme, os basbaques em volta a apreciar, trombudos, ciumentos, "estes gajos que se fazem às camones!"
Não olhes, não te rales. Mãozinha delicada, branca, femeal. Retira a dele com medo de perder as estribeiras, começar ali o que está a planear para depois do anoitecer: o fadinho, os becos sem luz, o Castelo está fechado, vamos então a Alfama! Cuidado não escorregue, estas calçadas são a desgraça dos tacões Yes. Espere. Há-de enlaçar então a cinturinha quente, requebrada.
Sem apoio o mapa cai, riem daquela sem-graça, baixam-se ao mesmo tempo e as cabeças tocam-se, ele aproveita para dizer que ninguém vai a Béléme, uma torrezita antiga, vê-se melhor da ponte, de longe até é mais bonita.
Azeda, desconfiada, a gorda ainda por cima tem ciúmes, de certeza tem, não faz caso do que ele diz, nem sequer olha, segreda qualquer coisa à companheira, que sorri, já esquiva.
Vão embora e ainda tenta, mas sem entusiasmo: - Se quiser que as acompanhe… É sempre a direito até ao rio, e no Terreiro do Paço, com o elétrico…
Ela acena que sim, mas não compreendeu, viram-lhe as costas e atravessam o Rossio.
*  *  *

- É a primeira vez que me constipo este ano. No Verão! Imagina!
O Chagas não responde, porque ao sentar-se sentiu um objecto duro entre a almofada e a cadeira, procura localizá-lo.
Adivinhou e ia ajudar, mas conteve-se: - Se me chego, amanhã estás de cama. Isso deve ser algum brinquedo, tenho uns netos levados da breca! Não respeitam nada!
Era um martelo. O Chagas pô-lo cuidadosamente no chão e voltou a sentar-se, contrafeito. Sabia mais ou menos o que ia acontecer, a razão do convite. Adiando: - Se não fosse o prédio em frente tinhas aqui uma linda vista.
- É verdade. Puseram esse trambolho e não se vê o rio.
No momento de silêncio um correr de passos, uma voz de mulher atrás da porta: - O avozinho está com um senhor.
- Quantos tens?
- Ainda nenhum.
- Eu cinco. Dois da filha. Três do rapaz. Cinco!
Falava dos netos, ia falar do filho, não podia deixar de ser. Ficou à espera, incomodado, eram companheiros de tantos anos, mas quando tinha dito ao director que o Pereira o chamara – Com certeza por causa do rapaz- viu-o mudar de cor – Que não ponha aqui os  pés! Tenho muito respeito pelo pai, mas esse filho da puta…"
- Como vai o jornal?
A pergunta apanhou-o desprevenido Estava preparado para ouvir misérias, lástimas, dificuldades, tinha-se couraçado - Mas como? Uma camaradagem da vida inteira! - evitava olhar de frente aquele homem magro e desmazelado, a tossicar, envolto num roupão sem cor, as farripas de cabelo e a pele traindo mau passadio, aflições, horas de angústia.
- O jornal? - encolheu os ombros. - O costume. Uma trabalheira, menos gente…
Podia ter sido um intelectual brilhante, dessas figuras que deixam marca nas Letras, na Política, mas circunstâncias, fraqueza interior, pouca sorte, desânimo, quem poderia dizer? - os anos tinham passado, as ocasiões, a teimosia em escolher o lado dos vencidos roera-lhe a vitalidade.
Escritor falhado, os poucos livros classificavam-no em segunda linha, ignorado do público, posto de lado pelas antologias, os amigos rareando, supersticiosos, temendo que a pobreza contagiasse.
Encarou-o e, naquele instante, vendo-o sorrir, não seria capaz de recusar.
- Parece que realmente vamos ter mudança. Nos últimos tempos vocês têm podido escrever muita coisa. Mesmo sobre o caso do bispo.
- Não te iludas. É pra inglês ver.
Ansiava que lhe dissesse o que queria, deprimido pela indigência que ressumava de tudo, dos móveis caducos e desemparelhados, dos remendos, dos quadros, do cheiro da cozinha.
- Lembrei-me… - procurava qualquer coisa, pôs os óculos - Rosalinda! Eu tinha aqui...
A rapariga assomou, fez um aceno: - O que é que quer?
- Aquelas folhas que estive a ler…
- Não são essas está aí ao lado?
Apanhou-as com dificuldade, enquanto ela fechava a porta:
- É a minha nora.
Não soube que responder. O Pereira! O rapaz cheio de vida, que no dia do Armistício, desprezando o risco, marchara à frente de todos aos vivas à Liberdade, e que ao encontrá-lo o tinha abraçado, incapaz de esconder as lágrimas, Desta vez há esperança, Chagas! Há esperança!
- Tenho aqui uma coisa… - a tosse fê-lo parar, escarrou no lenço - Uma coisa que em minha opinião não está mal, e se pudesses… Lê este bocado.
Queria desculpar-se, dizer que tinha pressa, sair, mas não foi capaz e ia começar a ler quando ele o interrompeu:
- Espera. Isso não tem nada a ver. Chamei-te pra outra coisa, pra te falar…
- Do rapaz?
- Não. Esse é novo, duma maneira ou doutra lá se há-de arranjar, e se não ganhar juízo, pior pra ele. Mas ganha. O que me preocupa… - calou-se, mrtificado, baixando os olhos:
- Estou muito mal, Chagas. Tenho medo!
- Mas de quê, homem?
Um silêncio insuportável. Tinham-se levantado, comovidos, mas o doente afastou-o com um gesto:
- Não quero que pegues alguma coisa. Leva isso. Vê se vale a pena.
Apertou-lhe a mão com força, como se tivesse de encorajá-lo, mas só soube dizer: - Então! Então!