A ideia era outra, mas não pude ir além da falação que segue.
Porque sou avesso
a minúcias, apressado por natureza, e atreito a momentos de distracção, acontece-me
com frequência tropeçar em detalhes e conclusões, interpretar errado o que
leio ou o que me dizem.
Sofro também de uma
dose anormal de desconfiança, de maneira que, ao receber o tema desta mesa,
"Não são minhas as correntes que escrevo, é outro que as escreve em
mim", não li o que lá estava.
Trocando o
"em mim", pessoano e esotérico, por um desconfiado "por mim",
fui levado a supor que os autores do tema, desejando criar neste salão
literário um suspense de telenovela,
de certeza esperavam que cada um de nós, vestindo o sambenito do condenado em
auto-de-fé , viesse revelar o nome do ghost
writer, do amanuense a quem paga.
Se uma segunda e
mais cuidada leitura, me permitiu descobrir o erro em que tinha caído, de forma
alguma deixei de me preocupar.
Pode ser que me
engane, pois não vejo fumos de incenso, nem a mesa pé-de-galo, mas isso não
obsta a que, com falso pretexto, me tenham atraído ao que, sob a aparência de
um festivo evento das Letras, seja de facto uma refinada sessão espírita.
É que só assim explico
a inquietante curiosidade de quererem espiolhar acerca desse outro que, pelos
jeitos, escreve em mim.
Será que isso de
facto acontece? Acreditam Vossas Mercês em diabinhos que sabem dactilografia e
sintaxe? Ou que, escondidos nas profundas, se agitam na massa cerebral incubus dados à Literatura? Terá alguém
trazido do Oriente uma poção mágica que
os organizadores distraidamente beberam?
Seja como for, e
com pena de não responder pela afirmativa, devo confessar que, na vivência do
meu corriqueiro dia-a-dia, não há lugar para o
sobrenatural. É tudo trabalhinho, paciência, teimosia, dores nas costas,
cefaleias. Frustrações também. E perguntas sem resposta.
Tivesse eu uma diabinha
ou um satanás a escrever em mim! Que bom seria!
Infelizmente,
assim não é.
Herdeiro do
pecado original, na acepção bíblica do termo sou um desgraçado, aquele a quem
foi negada a graça do Senhor, e por isso tem de ganhar o pão com o suor do
rosto, e alinhavar ele mesmo a prosa que, talvez por isso, raro sai a preceito.
Todavia, a franqueza
obriga-me a fazer uma ressalva. É facto que numa ou noutra altura, abrindo ao
acaso um livro meu, ou lendo uma citação que alguém de mim fez, tem-me
acontecido dar com uma frase que não recordo e me parece escorreita.
Durante um
segundo, talvez dois, sou tentado a ver ali a misteriosa intervenção do
sobrenatural, e a sentir-me ungido pela divindade, mas pouco tarda a que caia em mim, reconhecendo os sintomas da amnésia.
Isto dito, creio
que se impõe a conclusão de que foi erro o terem-me convidado para uma tertúlia
em que me vou ver mal para participar.
E deixem que
termine com um aviso. Embora não disponha de um outro que em mim escreve, de
forma alguma pretendo negar o fenómeno, é mesmo provável que entre os colegas
de mesa haja mais que um abençoado.
Se assim for peço
que ele, ou ela, entre no assunto de mansinho, porque os anos e a pressão
arterial me impedem as emoções fortes.
Sei que
resistiria mal ao choque se, a modos de aparição, eu visse materializar-se junto
do colega o outro que nele escreve. E estou que, junto com o susto, um ataque
de inveja acabaria comigo.