Aos sessenta e seis anos José Saramago vive confortavelmente a dois passos da residência oficial do primeiro-ministro, sorri divertido quando lhe pergunto qual é a sensação de, quase do dia para a noite, se ver liberto de tantas pressões e ser considerado como the grand old man das letras portuguesas:
«Se o êxito tivesse
vindo quando eu tinha uns trinta ou quarenta, anos, é possível que, depois de
viver muito tempo com semelhante aura, eu estivesse imbuído dum sentimento de
importância e caminhasse pelas ruas de Lisboa com um ar de patriarca e glória
nacional. Daqui a cinco ou dez anos, se tiver tempo para escrever o que ainda
penso escrever, talvez o possam dizer. Mas hoje não tiro daí nenhum sentimento
de vaidade ou de orgulho, não me tomo por importante, e quando ouço afirmações
tão simpáticas como essa, a minha tentação, sinceramente, é olhar para o lado,
a ver se estão a falar com outra pessoa.»
- Quais são, na sua opinião, as circunstâncias
que promoveram em Portugal o actual interesse do público pelo realismo mágico e
o romance histórico?
«Eu não sei se
haverá de facto um interesse do público orientado para essas duas áreas, se
exactamente é verdade existir esse interesse. O que sim, acontece, é um
fenómeno bastante mais geral e eventualmente positivo: depois do 25 de Abril,
uma data que vai ficar como uma inevitável referência no plano cultural e no
plano literário, aconteceu qualquer coisa que é novo nesta terra, e que foi o
súbito - porque efectivamente foi como que uma espécie de explosão, de erupção
- o súbito interesse do público português pelos seus escritores. Quer dizer:
não é que antes não existisse um interesse, mas digamos que a atenção do
público se dispersava mais pelas obras traduzidas. Quando dois ou três anos
depois começaram efectivamente a aparecer obras, e refiro-me especialmente ao
romance, houve de facto como que uma descoberta dos romancistas portugueses por
parte dos leitores portugueses, e que, julgo eu que tem que ver muito com - eu
não quero cair na velha questão da perda da identidade nacional, o que creio
ser um falso problema - tem a ver, enfim, com o regresso à pátria, ao nosso
ponto de partida. Parece notar-se desde então como que uma espécie de regresso
do interesse dos portugueses a si próprios. Quer dizer: passaram a
interessar-se por si próprios e, consequentemente, passaram a interessar-se
mais pela sua história e pela sua cultura, como uma descoberta de si mesmos no
plano histórico e cultural geral.»
Mas no seu caso…
«No meu caso, penso
que isso tem a ver com uma atitude minha em relação à história e à cultura, e
sobretudo em relação à história, que é o eu não separar o ontem do hoje, e
também para quase não separar o amanhã do hoje e do ontem. Para mim o tempo é
qualquer coisa onde eu estou, não onde eu me movo, porque é o tempo que se move
comigo, ou eu me movo com o tempo, eu não me movo no tempo, e esta ideia dum
tempo que é uno e que não se pode dividir em passado, presente e futuro, faz
com que, ao escrever, por exemplo, o Memorial
do Convento, eu o tenha feito, não com a consciência de estar a escrever um
romance histórico, mas com a consciência de estar a tomar uma parte do tempo,
que tanto faz que seja anterior ou posterior, ou de agora, ou de amanhã, e que
contém - não quero dizer que contenha uma lição, porque não vou buscar lições à
história para dar essas lições às pessoas de hoje - mas que tem pelo menos uma
constância para mim, a constância do sonho do homem, do trabalho do homem, da
aventura do homem no tempo. Para mim estão tão perto de mim o D. João V do Memorial do Convento como o
primeiro-ministro Cavaco Silva. Eu não tenho a consciência de estar a escrever
um romance histórico. Quanto à questão do realismo mágico, ou real maravilhoso,
tudo isso, essas pequenas etiquetas que tentam definir, enquadrar, um modo de
ver a realidade, eu acho que tem mais que ver, no meu caso, com aquilo a que eu
chamaria uma espécie de sobrenaturalização da realidade. O tomar toda a
realidade como sobrenatural. Ou melhor: ao escrever, sobrenaturalizar a
realidade.»
Mas ao sobrenaturalizar a realidade, não se
corre o risco de lhe dar assim como que um cheiro de religioso?
«Não, não acho,
sinceramente que não. É realmente verdade que há como que uma espécie de
atitude religiosa minha em relação a tudo isto. Quer dizer: em relação ao
mundo, em relação à sociedade, ao homem, à criação, seja ela qual for - a
criação literária, a criação artística. Há uma atitude de profundo respeito de
mim em relação a esta coisa que é o ser humano, e esta coisa que envolve o ser
humano, mas sem qualquer sobrenatural ou transcendência. Não tenho nenhuma
relação com a transcendência. Sou ateu confesso, declarado e imperturbável. A
morte não me tira o sono e o além não me traz nenhuma preocupação particular e
não creio na vida futura. Tenho essa atitude em relação à vida, mas à vida que
eu sou, à vida que eu tenho, à vida que é dos outros, onde eu estou. Então,
quando eu falo em sobrenaturalização da realidade, no fundo talvez isso não se
afaste muito de qualquer coisa que não tem nada que ver com a religião - e
quando eu digo que não se afasta muito não é em relação aos fins, não é em
relação aos resultados, digamos que é em relação à atitude. Uma atitude próxima
da atitude surrealista.»
De que modo é que o seu ser comunista se enquadra nessa
forma literária que, como diz, se aproxima do surrealismo?
«Eu acho que se
enquadra muito bem, pacificamente, sem nenhuma dificuldade. Creio que tudo isso
assenta num preconceito, que consistiria nisto: se o escritor x. é comunista
deve escrever desta maneira e deve tratar estes temas, como se todo o resto lhe
estivesse vedado. O facto de, em certas épocas, ter havido orientações de
carácter geralmente vindas de ideólogos-funcionários, ou de
funcionários-ideólogos, como se lhes queira chamar, e que eram geralmente gente
sem nenhuma sensibilidade artística, e decidiam no seu foro particular que a
arte ou a literatura se deviam fazer de determinada maneira, e se esses funcionários
encontraram escritores ou artistas que acataram essas ordens, ou essas
orientações, então eu direi que o mal aí se divide pelas aldeias, e tanta culpa
têm uns como têm outros. O que me parece é que a limitação exterior da
capacidade imaginativa, criativa, especulativa, é, seria com certeza, um
atentado contra a minha própria liberdade pessoal e, tão grave como isso,
contra a liberdade que reivindico de criar conforme eu entenda. E é-me
completamente indiferente, mas rigorosamente indiferente que, eventualmente, à
direcção do Partido Comunista Português ou algumas das pessoas da direcção do
meu partido - coisa que aliás nunca aconteceu, é preciso acrescentar, mas pode
ter acontecido dentro deles próprios e não mo terem dito - não tenha agradado
particularmente, ou que continue a não lhes agradar particularmente o tipo de
literatura que eu faço. Se isso acontece é-me completamente indiferente, porque
nem eles ficam mais comunistas pelo facto de pensarem assim, nem eu fico menos
comunista pelo facto de escrever como escrevo.»
Embora Portugal seja um país onde uma
grande parte da população continua a viver mal, na literatura portuguesa
nota-se uma espécie de enfado, um desinteresse em relação aos acontecimentos da
sociedade em que vivem. E não me refiro somente aos acontecimentos políticos.
Enquanto o neo-realismo esteve na moda, tinha-se a impressão de que os
escritores se sentiam solidários com aqueles que viviam menos bem. Hoje tem-se
a impressão que essa solidariedade desapareceu para dar lugar a preocupações
exclusivamente estéticas.
«Bom, eu não sei
exactamente… Eu diria que esse fenómeno não é exclusivamente nosso. Eu creio
que isso a que chamávamos o romance social, para falar só do romance,
evidentemente, está "desacreditado" em toda a parte. Eu dou-lhe um
exemplo, até aqui ao lado, na nossa vizinha Espanha, um romance meu publicado
em 1980, o Levantado do chão, e que é
o quarto livro meu que se publicou em Espanha, depois d’O ano da morte de Ricardo Reis, o Memorial do Convento e A
jangada de pedra, embora tendo sido bem recebido pela crítica, essa crítica
não deixou de estranhar que, num tempo como o de hoje, esse romance abordasse
duma maneira tão crua questões como a fome, o desemprego, a luta pelo pão e
tudo isso, o que se considera - e é natural que sim, que se considere - que
agora no quadro da felicidade que vem aí pela porta da CEE, todas essas
questões não têm mais sentido. Portanto não é apenas aqui em Portugal que esse
fenómeno se dá, eu creio que é um fenómeno europeu. Não sei como é que as coisas
se passam na Holanda, mas se calhar não andarão muito longe disso, a não ser
que a Holanda já seja um país tão feliz, tão feliz, que os seus escritores não
precisem de preocupar-se com essas questões.
Estas coisas estão
todas ligadas umas às outras, e talvez haja uma razão de carácter sociológico
para que a literatura se esteja a afastar, ou se tenha afastado de temas que,
ainda há vinte anos ou coisa que o valha, eram temas que o escritor se sentia
como que obrigado a tratar.»
E hoje não?
«Eu julgo que isso
tem que ver com a difusão maciça das imagens, com a televisão, que enche as
nossas casas de tudo quanto até há algum tempo era campo quase exclusivo de
tratamento para os escritores. O mal social, neste caso a fome, a droga, tudo,
a televisão, pelo menos a televisão portuguesa, dá-me todos os dias uma dose
maciça de fome em África, de tudo quanto são carências, oferece-me tudo limpo e
a cores. Então, quer dizer, a brutalidade dessa informação e o efeito de
analgésico são de tal ordem que acabam por produzir o cansaço da repetição. E
tenho a impressão de que o escritor acaba por chegar a esta conclusão: não vale
a pena estar eu a escrever sobre aquilo que está constantemente a ser visto.
Penso que esta pode ser, enfim, uma razão. De qualquer maneira não creio que se
esteja a cair numa espécie de esteticismo, de vazio. Antes me parece que estamos
todos um pouco angustiados.»
De olhos abertos para o ecrã da televisão,
mas fechados para a realidade circundante?
"É o fim duma
civilização, a entrada noutro tempo que nenhum de nós é capaz de imaginar o que
vai ser. Esse bombardeamento maciço de canais de televisão está a encher as
casas de tudo quanto é mensagem, de tudo quanto é imagem e informação, e nós
não sabemos o que vamos fazer com elas. Eu neste momento não sei o que é que
faço com o acumular de informação que, se eu abrir a porta, me entra pela porta
dentro. Então, eu julgo que no nosso caso particular, aqui, com um
desenvolvimento tecnológico que não tem comparação nem sequer com o dos vizinhos
mais próximos - eu julgo que a atitude dos escritores portugueses hoje… Mas não
quero falar em nome dos meus colegas, tenho de falar em meu próprio nome, eu
sinto que o meu dever neste momento, neste momento em que um certo Portugal vai
morrer, inevitavelmente vai desaparecer, é como se eu tentasse, e tentasse é
mesmo a palavra, escrever algumas linhas de um testamento que vamos ter de
deixar neste tempo da nossa história. Eu julgo que todos os meus livros têm no
fundo um carácter testamentário.»
E de mensagem?
«Não lhe chamaria
mensagem. É por um lado uma palavra demasiado cheia e por outro lado demasiado
vazia. O que eu quero dizer é como se fosse um acto de reflexão. Pensar por um
lado na minha própria vida pessoal, o que fiz, o que fui, o que sou, mas
sobretudo pensar nisso não em termos autistas, mas sim em termos de parte de
uma colectividade, de uma sociedade, dum país, dum povo que é este. E sempre
com a consciência de que estou também a dizer algumas das últimas palavras de
um país que, duma certa maneira, vai dar lugar a outro país. Dentro de vinte,
trinta anos, Portugal não terá nada que ver, ou pouco terá - e eventualmente em
aspectos positivos, mas quem sabe se também em aspectos negativos - não terá
que ver com o Portugal do século 19 que só agora é que está nas vascas da
agonia. O Portugal do século 19 está a morrer agora. Então digamos que os
escritores deste tempo talvez sejam os últimos escritores do século 19.»
Li com alguma surpresa o seu romance A jangada de pedra, e ainda com mais
surpresa li um artigo seu demonstrando uma certa irritação para com a ideia da
Comunidade Europeia, a Europa de nós todos, aquela casa europeia em que vamos
ser obrigados a viver, sem meios para pagar o aluguer. Acha que a nossa adesão
à CEE acabará por nos fazer culturalmente mal?
«Eu não posso ser
evidentemente contra as permutas culturais. A cultura dos homens fez-se da
criação própria e da permuta com os outros e não se trata de buscar uma espécie
de isolacionismo cultural. Simplesmente, quando se diz que uma posição como a
minha é uma posição que está, digamos, contaminada de nacionalismos, e neste
caso de nacionalismo literário, de nacionalismo cultural, a minha resposta é
sempre esta: quando a mim me acusam de nacionalismo é porque, ou melhor, quem
me acusa de nacionalismo está, no fundo, a defender o seu próprio
nacionalismo.»
Espere aí! Além de também ser português, eu
de maneira nenhuma o acuso de nacionalismo.
«Não, não é você
que me acusa, são as pessoas que dizem ah! mas agora nesta altura, e fazendo já
parte da Europa, para que é que vamos estar a incomodar-nos com isso? E dizem
que não faz sentido. Ora eu digo que faz sentido. Porque vamos lá ver: o que é
a CEE, o que é o Mercado Comum? Bom, eu sou ignorante de todas essas questões,
mas não sou completamente ignorante da história. E as guerras na Europa sempre
tiveram um único motivo: a disputa da hegemonia sobre a Europa. Depois destas
duas guerras terríveis, eu penso que, mais ou menos conscientemente, as grandes
potências europeias deverão ter chegado à conclusão de que não é possível
alcançar a hegemonia sobre a Europa através duma guerra. E isso é positivo.
Então as duas ou três maiores potências europeias puseram-se de acordo para,
conjuntamente, administrarem a Europa. O que se está a passar é a administração
da Europa. E eu não posso esquecer nunca, não esquecerei nunca, que de facto
este nosso pequeno país foi literalmente desprezado, ignorado, humilhado
algumas vezes, até pelos seus próprios aliados, como é o caso da Grã-Bretanha.
E não tenhamos ilusões, o desdém continua, os pequenos países da Europa vão
continuar a ser pequenos países e tratados como pequenos países. Essa ideia de
doze parceiros iguais é uma mentira. Se a política económica portuguesa já não
é resolvida aqui, se na distribuição europeia do trabalho nem sequer sabemos
que parte é que nos vai caber, começamos a suspeitar. Quando o ministro da
agricultura português declara que a nossa vocação florestal é um trunfo junto
da CEE, está a dizer que na divisão da produção europeia, a nós cabe-nos apenas
sermos uma floresta para fornecimento de celulose.»
Afinal você mostra ter uma preocupação
política e social, enquanto que no seu romance A jangada de pedra...
"Quando eu n' A jangada de pedra entro nessa utopia de
separar a Península Ibérica da Europa não é, isso não significa o corte da
Península Ibérica em relação à Europa, significa que a Europa deve ser
arrastada, levada para o sul, é dizer: atenção Europa, há mais coisas no mundo
do que tentar ser um terceiro bloco económico entre os Estados Unidos e o
Japão. E no plano cultural o que eu não quero é que este país desapareça
culturalmente. Mas esse risco existe, precisamente com todos os meios e todas
as pressões de ordem económica e o processo de implantação das multinacionais.
Essa alegria da circulação dos capitais dentro da Europa não vai significar que
os capitais portugueses se irão instalar na Holanda ou na Alemanha, mas que os
capitais holandeses e alemães se vão instalar aqui. E os espanhóis, os franceses,
todos mais. Ora a partir do momento em que o capital está instalado não precisa
de mandar tropas, não precisa de obrigar toda a gente a falar alemão ou
holandês. Quer dizer: é a própria força das coisas que vai fazendo como
acontece com um queijo que é cortado pelo lado de baixo, e olhando assim de
cima parece que o queijo está intacto. Nós vamos ser cortados em fatias finíssimas
pelo lado de baixo, e um dia destes nós não teremos queijo, ou teremos um
queijo completamente reduzido à casca. Mas o que também felizmente acontece é
que as pessoas e as culturas têm uma grande capacidade de defesa. O homem sabe
que morre, que tem de morrer, mas insiste em deixar a marca da sua presença. E
assim, ao mesmo tempo que assistimos a um processo de globalização cultural,
assistimos também à inssurreição das pequenas culturas e das pequenas
nacionalidade que, justamente, não querem desaparecer.»
Mas como explica então que em Portugal se
recomece a falar a sério da possibilidade de uma União Ibérica, do iberismo, a
fusão do nosso país com a Espanha?
«Aí há as velhas
histórias do medo da Espanha. Temos um medo incrível de tudo quanto vem de
Espanha, até inventamos o ditado de que da Espanha não vem bom vento nem bom
casamento. O que acontece é que, ao olharmos para a Europa, podemos ver que há
um certo ar de família dos Pirinéus para cá. Para além das diferenças que não
são só entre Portugal e a Espanha, porque existem dentro da própria Espanha, e
eu creio que nalguns aspectos as diferenças no interior da Espanha podem até
ser maiores do que aquelas que há entre nós e os espanhóis tomados nos seu
conjunto. A Catalunha não é a Andaluzia, a Andaluzia não é a Galiza, e assim
por diante. Aqui em Portugal o espanhol é sempre o inimigo puro por definição.
Não importa que outros nos tenham tratado da pior maneira, que os franceses nos
tenham invadido por três vezes, que os ingleses nos tenham humilhado
profundamente. Em Portugal, a atitude no fundo resume-se a que toda a gente
continua a encarar a Espanha com desconfiança, se bem que eu julgue que há
alguns sinais de mudança. A União Ibérica não faz sentido nenhum, e eu próprio,
que tenho a fama de ser iberista, não vejo que haja qualquer viabilidade nessa
ideia. O que me parece, contudo, é que embora o iberismo esteja morto, nós não
podemos viver sem um iberismo, uma ideia ibérica. E afinal de contas, se é
possível uma ideia europeia, se é possível o maior, porque é que não há-de ser
possível o menor?»
Enquanto que você parece recear que muita
coisa vai desaparecer da nossa cultura e literatura, ao ler a imprensa
portuguesa eu noto que existe um certo contentamento entre os escritores
portugueses, um sentimento de dinamismo, ouve-se afirmar com seriedade e
frequência que a literatura portuguesa está num auge, que é neste momento uma
das grandes da Europa, das mais dinâmicas. Qual é o seu comentário a isso?
«Eu não posso ler
tudo aquilo que se escreve por essa Europa, e às vezes a gente faz certas
afirmações sem grandes fundamento objectivo, mas enfim, são coisas que começam
a ser ditas e a partir de certa altura repetem-se sem sentido crítico, não é?
Mas parece que há de facto a ideia de que neste momento, e eu penso que pode
haver alguma verdade nisso ouvindo os críticos estrangeiros, a literatura
portuguesa, e especialmente o romance, são, talvez, dos mais originais, dos que
têm mais interesse. Eu creio que isso é perfeitamente compatível com uma
situação de fim, que é esta nossa. Eu não quero entrar pelas metáforas, mas a
verdade é que, até a chama duma vela, no momento exacto em que vai
extinguir-se, tem um clarão súbito, e depois é que se extingue. Isto não
significa, evidentemente, que eu pense que depois deste clarão a literatura
portuguesa se extinga. Enfim, não vai acabar, não vai morrer, mas estamos de
facto numa altura em que as manifestações literárias talvez não dependam da
atitude pessimista ou optimista do autor, mas antes das próprias
circunstâncias. Constata-se entre nós uma atmosfera de expectativa. Toda gente
hoje fala na Europa, espera coisas da Europa, e essa atitude é muito nossa,
porque estamos sempre à espera do que há-de vir de fora, seja o ouro do Brasil,
ou o que não chegou a vir de África. Mas a verdade é que por baixo de todo esse
aparente optimismo começa a haver também uma preocupação, à qual as pessoas
ainda não estão a dar voz. De repente tem-se a consciência de que a Europa não
nos dá nada, que a Europa não tem nada que nos dar - e porque é que havia de
dar? nós é que temos de fazer o nosso próprio país - então assiste-se agora
como que a uma espécie de demissão dos portugueses em relação ao seu próprio
país.»
Também por parte dos escritores?
«Os escritores no
fundo afastaram-se muito da vida social, da vida política. Viraram muito as costas
a todas essas coisas, e estão eventualmente a fazer grandes livros, mas com um
ou duas excepções, nunca os escritores portugueses intervieram tão pouco na
vida do quotidiano do país, através do artigo, da opinião, da polémica. Nunca
aconteceu tão pouco como acontece agora. É um mau sinal. Eventualmente será uma
situação transitória, mas é realmente preocupante. Eu acho que não tardará
muito a que começaremos a sentir-nos preocupados, já não em relação a toda essa
questão da economia, que provavelmente é irreversível, mas quanto às
consequências no plano cultural com que de certeza vamos sofrer. E por favor
não me falem em consenso cultural europeu, porque isso é coisa que não existe.
A cultura europeia não existe. A cultura europeia sempre foi, e felizmente, o
conjunto das culturas dos povos da Europa. Isso é que fez a sua riqueza, a sua
diversidade, a sua fertilidade. Quando me falam em projectos europeus de vária
ordem, no fundo aquilo que eu vejo é que nunca se falou tanto em indústria de
cultura. Do ponto de vista tecnocrático a cultura é meramente uma indústria e
sob esse ponto de vista a cultura será tanto melhor quanto mais render. E
cultura que não rende não tem interesse para as multinacionais, para a banca
internacional. De forma que hoje somos meros números dentro dum computador.»
------------------------------------------------(*) Traduzida em neerlandês, esta entrevista foi publicada em Amsterdam no matutino De Volkskrant, a 10 de Março de 1989.
(**) Com o título Memoriaal van het Klooster, a tradução neerlandesa foi editada pela De Arbeiderspers no Outono de 1989.