Soará estranho,
facto é que não senti medo nem me apiedei de mim próprio, surpreendi-me a
aceitar com uma capacidade de indiferença que me desconhecia, assim a modos de
quem, por inesperado motivo, se vê num tempo de cadeia, mas recebeu garantia
segura de que não será pena perpétua.
Exótica
quarentena. Desinteressado das horas, do cariz do tempo, das mudanças de
estação. Distraído com os rostos que se debruçavam a examinar-me, os cuidados
que recebia, surpreso de não sentir dor ou fadiga, apenas alguma curiosidade acerca de um estado que, talvez
para compensação de limitações drásticas, extremava algo que não era a
capacidade de observação ou a agudeza do raciocínio, mas um modo de existência
em que, sem descartá-la, à memória tivesse sido retirada a capacidade de
modificar.
Exagero, mas só
ligeiramente, se disser me que divertiu a perplexidade dos polícias à paisana que, acompanhados de uma
enfermeira, ao segundo dia da
"ressurreição" me vieram observar, atónitos de que a minha
identidade não condissesse com a do locatário do apartamento onde eu
oficialmente residia. Suponho também que, passada a surpresa, se devem ter
perguntado, e gostariam que lhes explicasse, o não haver lá um único móvel,
estarem as gelosias cerradas em permanência, não se descobrir indício de jamais
ter sido habitado.
Deu-me a impressão
de que perguntavam qual era o meu estado, provavelmente se seria possível
interrogar-me. Um deles, esperançado de ver um sinal, aproximou-se, pondo-me
defronte dos olhos o passaporte canadiano que, por acaso, eu nesse dia trazia
no bolso.
Ficou assim um
instante, mas ao dar-se conta que nada adiantava devolveu-o à enfermeira, disse
qualquer coisa aos colegas e saíram.
Em circunstâncias
normais talvez tivesse jubilado com a vitória que apenas eu sabia ter obtido,
mas limitei-me a sussurrar no íntimo a frase que anos atrás me ocorrera, e
condensava a ânsia de anonimato que há muito se me tornou segunda natureza:
escapei à vida.
Assim era, e a
minha satisfação provavelmente maior do que o daqueles que, tendo corrido um
perigo, dizem ter escapado à morte.