sexta-feira, outubro 4

Cais de Gaia


Perguntava-se se seria começo de doença, as visões inesperadas daquele rosto de jovem desconhecida, que lhe surgia num espaço impossível de localizar, insólito ecrã tridimensional, em simultâneo no cérebro e fora dele.
Ruiva, pequeninas sardas na pele muito branca, olhos entre o cinzento e o verde, a expressão extática de quem olha desinteressada do que vê. Conhecia-lhe o rosto, imaginava o corpo, as atitudes, surpreendia-se a interrogá-la com a seriedade de quem aguarda resposta. Uma noite de insónia, fantasiando sobre milagres e aparições, na esperança de vê-la animar-se, ao mesmo tempo que a observava desatou a rir.
Felizmente vive sozinho, não tem de dar contas nem explicações.
Tarde quente. Está numa esplanada no Cais de Gaia, desinteressado da vista, atentando vagamente no público, estrangeiros em maioria, este dando na vista pelo traje, aquele pela boçalidade, um outro exagerando a admiração pela ponte, o colorido da Ribeira.
O casal sentara-se na mesa ao lado. Gente serena na meia idade, falando o inglês cuidado de quem passou por boa escola. Não lhes via as feições, mas com a proximidade apanhava uma ou outra frase, compreendeu que falavam de doenças, de alguém que recentemente falecera, da precisão de obras numa casa.
Minutos depois, ao pediram a conta à empregada, a mulher voltou-se, e ao vê-la de perfil não pôde acreditar: era, com mais anos, mas indubitavelmente, o rosto das suas visões. As mesmas sardas, o cabelo igual, os olhos entre o verde o cinzento. Os olhares cruzaram-se, a  mulher a encará-lo desinteressada, no rosto a expressão extática que tão bem conhecia.