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Podia ter-me acontecido, mas tive a sorte de que em
determinado momento boa fada virou a roda do leme e fui noutra direcção. Porque
também eu conheci a boémia dos quartos de hotel da Rive Gauche nos anos 50, quando brevemente se viveu a ilusão de que
a liberdade tinha finalmente chegado e o mundo se ia compor.
A maioria salvou-se ou fugiu, uns quantos levaram a sério
a ilusão e tornaram-se folclóricos, como Albert Cossery (1913-2008) - obrigado, Ana, por mo
ter lembrado - que recordo sentado no Flore,
imóvel que nem esfinge, pose de grand seigneur, excelente escritor, mas cravando amigos e conhecidos, seis décadas
a viver num quartinho de hotel que, sim, são românticos quando há pouco nos
rompeu a barba.
Trocou o Cairo por Paris aos trinta e dois anos, mas
apenas escreveu sobre o seu povo, bizarria que com ele partilho, como se, mesmo
longe, a alguns de nós seja impossível escapar ao enlace das raízes.
Os acontecimentos no Egipto levam a agora a que muitos,
como antes fizeram com Naguib Mahfouz, procurem nos livros de Albert Crossery, na literatura, explicações para a violência e o desatino dos
povos. É procurar em vão.