Caro B.S. F.,
Não será todos os dias, mas sei que, com atenção, lês
Wittgenstein, São Tomás, Confúcio ou Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh ibn Sīnā,
que também conhecemos por Avicena. Por isso te invejo, pois o que aprendi mal
dá para seguir Platão ou John Locke, o pensador do verdadeiro ideal
democrático, e que tanto contribuiu para impedir a criação de uma aristocracia na
sociedade americana.
Outros, menos favorecidos, encontram benefício na leitura
de policiais e histórias de amor, na Science
Fiction de Asimov, no horror de Stephen King, nas produções da Chicklit, nos imbróglios de José
Rodrigues dos Santos, e até relendo As
Pupilas do Senhor Reitor ou soletrando o Borda d'Água.
Grande coisa, pois, é a leitura, mas também de variadas
consequências, implicando por vezes nas relações, ou emitindo complicados
sinais de antipatia, de descrença e aborrecimento. Acontece ao acaso das conversas, por vezes a encher um
vazio ou mudando para assunto menos delicado, mas bom seria se evitássemos
informar acerca das preferências e entusiasmos sobre o que lemos.
Sabendo-te assim íntimo na leitura de espíritos superiores,
tendo-te tantas vezes ouvido citar Descartes, Aristóteles, Freud e outros
génios, com a segurança que só a competência empresta, imagina que, pedindo
mais um café, me sussurras quanto nos últimas dias te tem absorvido a leitura
de, por exemplo, um romance de Óttar M. Norðfjörð.
Como sou razoavelmente capaz de ocultar o que sinto não arregalarei
os olhos, nada nas minhas feições trairá espanto ou surpresa. Mas no fundo vou-me
perguntar que sonhos escondes, que fraquezas e temores desejas que eu descubra
através dessa retorcida prosa, onde é questão de nevoeiros e entranhas furadas,
garrotes, quedas mortais nas brechas do Tungnafellsjökull, dentes cravados até ao sangue em
gargantas alvas.
Essa é a tragédia. Não quero descobrir quem realmente
és, nem sequer desejo que, pela retorcida indicação de uma leitura, me
acenes um vício teu, um medo, um recalque. Disso te peço que dês conta:
esconde as tuas leituras, fala-me apenas daquelas em que não corres o risco de
te mostrar na fragilidade da nudez.