Ando a contar mortos. Não todos, alguns, como se tivesse chegado a hora de pôr a escrita em dia, rever momentos, ocasiões, ódios, questiúnculas. A altura de interrogar. Mesmo sabendo que é impossível descobrir o que então quiseram de mim, ou porque se atravessaram no caminho, o motivo da inimizade, das rasteiras, das armadilhas, da cortesia fingida, do falso carinho.
Digo nomes, vejo rostos. Quedam-se inexpressivos e
silenciosos, imóveis, manequins em montra de loja, como se ao deixar a vida tivessem
descartado o que foram e fizeram, o que sentiram, as molas que os empurravam.
Conto-os porque contaram, fizeram parte de mim, mas foram
o que preferi não ser, deram os passos que recusei, em vez das ruas arejadas escolheram
os becos e as vielas, a máscara, o esconso.
Surpreendo-me a recordá-los sem pesar, e vou-os
arrumando, não como os viventes de carne e osso que foram, mas personagens da surpreendente
ficção em que a vida se torna, aquela que nenhum escritor consegue escrever.