sexta-feira, dezembro 7

Descida



Desci esta madrugada a um inferno de recordações e, quando escapei dele, ocorreu-me como seria bom que houvesse para a alma o equivalente do hammam, o banho turco, onde com lavagens e massagens se renova a pele, abrem os poros e tonifica a musculatura.
Seria bom, mas não há. Nem sei de maneira que, nessas ocasiões, trave o diabinho cuja função é destapar a panela onde fervem as lembranças que nos afligem. E quanto mais desejamos que o suplício pare, mais ele sopra, avivando os maus momentos com a diligência de quem acarreta achas para a fogueira.
Nessa disposição me encontro, perguntando-me se não haverá maneira de deitar a outrem a culpa das minhas aflições. Suponho que não há. Pior: com o andar dos anos aprendi que a culpa é sempre minha, só minha, e cada vez que tento sacudir a água do capote ou choro lágrimas de inocência, o diabinho chama o chefe, com as tenazes grandes e o tridente afiado.

Céu cinzento, morrinha, nevoeiro, maus pensamentos, ressaca da vida. E porque nada se vê, dou os bons-dias, sorrio a quem passa, estou bem, obrigado, cuidado com a porta, veja se tem troco, isto está de chuva, tira daí o gato, o padeiro demora, o enterro é às cinco.