Que este dia de chuva, vento, cara feia,
seja de despedida. Nasça o ano amanhã soalheiro, esperançoso, com promessas de alegria, de paz,
e Deus a todos abençoe.
segunda-feira, dezembro 31
sábado, dezembro 29
sexta-feira, dezembro 28
Desigualdade
- Você gosta de brincar – diz ele.
É um simples. Logo de rapaz se deu ares e mantém a pose. Quer, aprecia que digam: vai ali um sujeito sério, responsável. Leu no jornal que o consideram "figura grada da nossa sociedade", e acreditou.
Sussurra então, bom conselheiro: - Andaram por aí a dizer que éramos todos iguais, mas esse tempo passou. Somos todos desiguais.
Dou-lhe razão. Desiguais somos, e poucos se dão conta de que o brincar importa.
É um simples. Logo de rapaz se deu ares e mantém a pose. Quer, aprecia que digam: vai ali um sujeito sério, responsável. Leu no jornal que o consideram "figura grada da nossa sociedade", e acreditou.
É um simples, um pobre de espírito, senso de medida
não tem, julga o mundo à sua imagem, acha que craveira mais alta só a de um
trono.
O meu modo perturba-o. Com ar de reprimenda
aconselha-me a mudar, e exigir respeito, genuflexão, pois idade tenho de sobra.
Fora que a seu ver é assim que as pessoas gostam.Sussurra então, bom conselheiro: - Andaram por aí a dizer que éramos todos iguais, mas esse tempo passou. Somos todos desiguais.
Dou-lhe razão. Desiguais somos, e poucos se dão conta de que o brincar importa.
quarta-feira, dezembro 26
terça-feira, dezembro 25
Maldade pós-natalícia
Do
peito ebúrneo, da cintilação,
Fogo
tardo desmembra, rasga
Faixas
de noite, sulcos da alma.
Mole
dissoluta. Do teu evangelho,
Crispadas
centelhas de harmonia
Dançam
em vertentes caudalosas
No sim
da ilusão fanada do viver.
É desespero que sinto, o de ler sem compreender, o engano em que embrulham as palavras, as armadilhas do significado, as névoas, as viravoltas. E sigo os versos com dedo de criança, soletro, esbarro, paro em desalento. São palavras que conheço, mas noutra cara, traje diferente, exigindo em tom desdenhoso que compreenda o que para mim é algaraviada.
domingo, dezembro 23
sábado, dezembro 22
Seis
Cinco sobrinhos e a tia. Deu-se-lhes cama grande e agasalhada, mas nada feito, é aqui e assim que se sentem bem. (Clique)
sexta-feira, dezembro 21
Boas-Festas
Feliz Natal e Próspero Ano Novo. Com que
cara posso eu exprimir os mesmos votos a um tão variado número de pessoas,
todas elas diferentes e nem todas gozando da minha parte o mesmo grau de amor,
amizade ou simpatia?
Assim, nesta tradicionalmente chamada época festiva não retribuo votos. Os que faço vão em modo de oração, guardo uns instantes a pensar naqueles a quem quero bem, nos que me merecem carinho, nos que de maneira ou outra fazem saber que me têm em conta.
Assim, nesta tradicionalmente chamada época festiva não retribuo votos. Os que faço vão em modo de oração, guardo uns instantes a pensar naqueles a quem quero bem, nos que me merecem carinho, nos que de maneira ou outra fazem saber que me têm em conta.
quinta-feira, dezembro 20
Passeio
Fui-me a passear esta manhã e é como sempre,
as maravilhas aparecem à beira do caminho. Fungos desta cor nunca tinha visto, nem
o branco das estevas é neve, mas musgo, prova dos bons ares que aqui se respiram.
quarta-feira, dezembro 19
Nove da manhã
Dizem que esteve. Parece que o viram descer
a calçada. Alguns, aos berros da muita razão, juram que ainda anteontem passou
pelo café, mas não bebeu nada. Comprou cigarros, uma raspadinha.
-Isso foi a semana passada, meu homem, diz o senhor Zé Maria, que o conhece desde… - levanta a mão à altura de metro e pico. Usa expressões de antigamente e diz que se houvesse parceiro ia num dominó, mas ninguém lhe responde.
A Zilda tem mau prenúncio. Duas vezes sonhou com ele todo vestido de preto, a olhar de lado, uma vela na mão, o mesmo sonho que teve quando o Pintinhas caiu do andaime.
- Sabe-se alguma coisa? – pergunta o Arnaldo, baixando o vidro do Audi.
As cabeças acenam que não e abrem alas para que a D. Zé passe, certinha às nove e um quarto.
- Queira Deus não seja desgraça.
No outro lado da rua vêem a Alice abrir a carrinha, pegar mais novo pela gola, empurrar o outro para o banco de trás.
- Se calhar vai à Polícia.
- Foi ontem.
- Não adianta.
D. Zé olha o espelho, ajeita o cabelo, acena para a segunda bica.
-Isso foi a semana passada, meu homem, diz o senhor Zé Maria, que o conhece desde… - levanta a mão à altura de metro e pico. Usa expressões de antigamente e diz que se houvesse parceiro ia num dominó, mas ninguém lhe responde.
A Zilda tem mau prenúncio. Duas vezes sonhou com ele todo vestido de preto, a olhar de lado, uma vela na mão, o mesmo sonho que teve quando o Pintinhas caiu do andaime.
- Sabe-se alguma coisa? – pergunta o Arnaldo, baixando o vidro do Audi.
As cabeças acenam que não e abrem alas para que a D. Zé passe, certinha às nove e um quarto.
- Queira Deus não seja desgraça.
No outro lado da rua vêem a Alice abrir a carrinha, pegar mais novo pela gola, empurrar o outro para o banco de trás.
- Se calhar vai à Polícia.
- Foi ontem.
- Não adianta.
D. Zé olha o espelho, ajeita o cabelo, acena para a segunda bica.
terça-feira, dezembro 18
Proveito
Meses atrás li com muito proveito A Civilização do Espectáculo, de Vargas
Llosa. Ontem, passando por um sítio onde vou com frequência, dei com este texto
de Eduardo Cintra Torres, e o meu proveito duplicou.
Ambos, o livro e o texto, são muito de
recomendar aos maiores de vinte e cinco anos e quinquagenários que, nos
concertos e eventos gritam, pulam, mas nunca se perguntaram por que razão o
fazem: http://quetzal.blogs.sapo.pt/
segunda-feira, dezembro 17
O madeiro
É uma cruz. Levezita. Pouco mais que um
incómodo. E os ingénuos que me obrigam a carregá-la só se dão conta do que
fazem e dizem quando, perdida a paciência, começo a rabiar.
Querem eles saber se esta ou aquela figura de livro meu é personagem autobiográfica, ficam de olho arregalado e a boca salivando no aguardo da resposta.
Favorito é A Amante Holandesa, onde um homem triste e desencantado se dá ao prazer inocente de mirar fotografias e desenhos de jovens corpos femininos.
Um dia, uma desarvorada não se conteve, chegou tão perto que lhe senti o bafo e, num sussurro, quis saber se "aquele era eu". Estive vai-não-vai para consolá-la, tanto mais que o olhar da dama prometia confidências, mas desisti, desapontei-a com a verdade.
"Aquele" não sou eu. Se de algum modo há pedaços de mim no que escrevo, nunca o leitor, nem mesmo o que nasceu adivinho, terá a arte precisa para destrinçar o que tranço.
Querem eles saber se esta ou aquela figura de livro meu é personagem autobiográfica, ficam de olho arregalado e a boca salivando no aguardo da resposta.
Favorito é A Amante Holandesa, onde um homem triste e desencantado se dá ao prazer inocente de mirar fotografias e desenhos de jovens corpos femininos.
Um dia, uma desarvorada não se conteve, chegou tão perto que lhe senti o bafo e, num sussurro, quis saber se "aquele era eu". Estive vai-não-vai para consolá-la, tanto mais que o olhar da dama prometia confidências, mas desisti, desapontei-a com a verdade.
"Aquele" não sou eu. Se de algum modo há pedaços de mim no que escrevo, nunca o leitor, nem mesmo o que nasceu adivinho, terá a arte precisa para destrinçar o que tranço.
domingo, dezembro 16
Bem-estar
Nos últimos dias, por razões de trabalho, aconteceu-me falar com um maior número de pessoas do que para mim é corrente e, uma vez por outra, tive a surpresa de me ouvir dizer que me sinto bem.
Semelhante afirmação desorienta o
interlocutor que, em geral mais novo, tem dificuldade em compreender a minha
paz e contentamento. Mas de facto assim é: sinto-me bem. Se esgravatasse, de
certeza iria encontrar uma ou outra razão de pessimismo e desespero. Simplesmente
acontece que deixei de me preocupar com o mundo, as suas fomes, guerras e desgraças, o arsenal de tragédias que, em
detalhe, a cores, som no máximo, me é servido a todas as horas.
De modo que, faz tempo, carrego o peso que
me cabe e, graças a Deus, aguento. Sinto-me bem. Carregue cada um o seu e deixe
de fingir que se sente esmagado pela miséria do semelhante.
quinta-feira, dezembro 13
A rua
Passamos e não vemos, que tudo é pressa,
frenesim, medos e desespero. A rua é triste. Tantos olhos, outros tantos cegos.
Quem atenta no senhor idoso vestido de luto, na mulher trombuda, no rapaz com
livros debaixo do braço, na garota que telefona olhando a vitrina, nos dois a
conversar encostados à porta, na fila
para o autocarro, nos que saem do café e hesitam para que lado ir? Quem atenta
neles?
Também eu passo, olho e não vejo, esquecido dos outros, mal lembrado de quem sou, perguntando-me que faço aqui, que razão me trouxe e se é vida uma inutilidade assim, a pressa que leva a nenhures, a indiferença que nos isola.
Também eu passo, olho e não vejo, esquecido dos outros, mal lembrado de quem sou, perguntando-me que faço aqui, que razão me trouxe e se é vida uma inutilidade assim, a pressa que leva a nenhures, a indiferença que nos isola.
quarta-feira, dezembro 12
Sacanices
O sacaninha tem aquele sorriso imbatível, o
olhar meigo, a dicção cuidada, o modo que pertence a quem veio ao mundo em
ninho confortável. O sacaninha sabe dos clássicos, de línguas, é bom nas
citações, fá-las em Latim quando é preciso. O pequenino poder que detém usa-o com o discernimento dos hábeis, medindo
agrado e severidade, diligência e desprezo, sorriso e má cara. Depende a quem,
mas tão presto é nos rapapés como nos pontapés.
Para seu mal, tem nessa presteza o tendão de Aquiles: faz de vez em quando rapapés a quem não lhos aceita, e há ocasiões em que, falhando o alvo, recebe com juros o pontapé que deu.
Mas nem isso o quebra: o sacaninha é como o vime, dobra-se conforme o vento e o poder de quem sopra.
Para seu mal, tem nessa presteza o tendão de Aquiles: faz de vez em quando rapapés a quem não lhos aceita, e há ocasiões em que, falhando o alvo, recebe com juros o pontapé que deu.
Mas nem isso o quebra: o sacaninha é como o vime, dobra-se conforme o vento e o poder de quem sopra.
segunda-feira, dezembro 10
"Wants to be friends on Facebook"
Desde há três meses e pouco, até há coisa
de uma semana, recebia eu todos os dias uma ou mais mensagens de boa gente que
queria ser minha amiga. Mas à moderna: fulano/a de tal wants to be friends on Facebook. Pouco a par da modernidade, respondia eu a todos “pela volta do correio”
com o texto que segue:
Grato pelo convite, mas deixei de estar
em redes sociais. Dá a impressão de que mantenho conta, mas acontece que quem
uma vez entrou no Facebook não consegue sair de facto, nem livrar-se da
impertinência dessa organização.V. aqui http://tempocontado.blogspot.nl/2010/02/facebook-genealogias-chatices.html
Afonso Ferreira, Agostinho
Santos, Aida Gomes, Alberto Franco, Alberto Jorge Guedes Reis, Alex Honrado, Alexandra
Miguel Frazão Moreira, Alexandre Roma, Alexandre Vasconcelos e Sá, Alice
Lacerda, Alice Vieira, Amadeo Liberto Fraga, Ana Aranha, Ana Branca, Ana de
Sousa, Ana Dianela Soares Ferreira, Ana
Freire, Ana Margarida de Carvalho, Ana Maria Oliveira, Ana Moreira, Ana Nunes
Cordeiro, Anabela Borges, Anabela Miranda, Anabela Natário, Anabela Sousa, André
Gomes, André Sebastião Sá, Anto Affonso, António Alberto Silva, António
Baptista Lopes, António Conde, António Fernando Nabais, António Gil, António
Gonçalves, António Luís Catanno, António Martins Neves, António Pedro Pereira, António Piedade, Aonia
Odarres, Arminda Luz Ferreira, Artur Barosa, Bárbara Taborda, Biblioteca Arga e
Lima, Biblioteca Escolar Foz Côa, Camila Lane Kerley , Carla Catalão, Carla Gonçalves, Carla
Maia de Almeida, Carlos Alberto Machado, Carlos Amaro, Carlos Azevedo, Carlos
Furtado, Carlos Leite, Carlos Lopes, Carlos Machado, Casimiro Teixeira, Catarina
Ivone, Celeste Pereira, Célia Lopes, Círculo de Leitores, Clara Macedo Cabral, Cláudia de Sousa
Dias, Cláudia Páscoa, Clorinda Torres, Colectivo António Manuel Pina, Conceição Gomes, Cristina
Basílio, Cristina Maria Ovídio Baptista, Cristina Silveira de Carvalho, Cristina
Veríssimo, David Machado, Dinis H. G. Nunes, Domingos da Mota, Domingos Lobo, Dulce
Garcia, Editora Babel, Emanuel Cameira, Fernanda Portela Martins, Fernando Alves
Espadinha, Francisco Belard, Francisco Correia, Francisco Duarte Azevedo, Germano Almeida, Goretti
Figueiredo, Graça Navarro da Cunha, Helena Alves Velho, Helena Girão
Santos, Henrique Nelson, Hugo Xavier, Inês Lourenço, Isabel Chaves, Isabel Damião, Isabel
Garcez, Isabel Lucas, Isabel Mateus, Isabel Mendes Ferreira, Isabel Rocha, Isabel
Rosas, Joana Emídio Marques, João Macdonald,
João Arezes, João Arsénio, João Bosco Delmar,
João da Luz Ferreira, João de Mancelos, João Gonçalves, João Luís Barreto
Guimarães, João Miguel Baptista, João Pombo, João Ricardo Lopes, João Tordo, João
Vieira, Joaquim Cepeda, Joaquim Paulo Nogueira, Jorge Silva Melo, Jorge Tinoco,
José André Sousa, José Augusto Nunes Carneiro, José Bandeira, José Braga-Amaral,
José Carmo
Francisco, José Diogo Nogueira, José Emílio-Nelson, José Meireles Graça, José Moças, José
Riço Direitinho, José Tavares, Julieta Maria Valadas Monginho, Lena Alves, Leonaldo
Almeida, Livraria Palavras de Culto, Livraria Porextenso, Livraria Sá da Costa,
Livraria Velhotes, Luís Carlos Silva, Luís Filipe Rodrigues, Luís Fonseca, Luís
Martins, Luís Miguel Rocha, Luís P. Carlo, Luís P. Carmelo, Luís Pereira, Luís
Semblano, Luís Silveirinha, Luísa
Mellide-Franco Monteiro, Luisa Sousa Santos, Lurdes Fidalgo, Maia David, Manuel
Alberto Valente., Manuel Gantes, Manuel
Halpern, Manuel João Croca, Manuel Monteiro, Manuel Neto dos Santos, Manuel
Vitorino, Manuela Silva, Margarida Bravo, Margarida Ferra, Margarida Fonseca, Margarida
Pino, Maria Adelaide Madeira, Maria Albuquerque,
Maria Bernardette Nogueira Sant'Anna, Maria Carmo Figueira, Maria da Conceição
Vidal, Maria de Lurdes Soares, Maria do Rosário Pedreira, Maria do Sameiro
Barroso, Maria Helena Coelho Lopes, Maria Isabel Silva Reis, Maria Jesus
Trindade, Maria João Camarinha Moreira, Maria João Cantinho, Maria Rocha, Maria
Rolim, Maria Santos, Mariana Crispim, Mário Cláudio, Mário David Campos, Mário Dorminsky, Marta Campos, Marta Coutinho, Mat
Münstermann, Miguel Barreto Henriques, Miguel Domingues, Mimi Kina, Mónica
Marques, Nair Alexandre, Natacha Palma, Natti Leppert, Nelson Correia, Nelson
de Quinhones, Nuno F Santos Cash, Nuno Teixeira, Óscar Macarenhas, Patrícia
Guerreiro Nunes, Paula Calhau Silvestre, Paula Carvalho, Paula Guedes, Paula
Machado, Paula Valério, Paulo
Alexandrino, Paulo Amado, Paulo Bugalho, Paulo Gonzaga, Paulo Granjo, Paulo Guinote, Paulo
Moura, Paulo Rodrigues Ferreira, Paulo Romão Brás, Pedro Almeida Vieira, Pedro
Fazenda, Pedro Ribeiro, Rafael A. Martins, Raquel Marinho, Raquel Ribeiro, Raquel
Varela, Renato Epifânio, Ricardo Afonso Lourenço, Ricardo Soares, Rita Dias, Rosamaria
Medeiros, Rosário Duarte da Costa, Rui Bebiano, Rui Carreto, Rui Couceiro, Rui Lagartinho, Rui
Neto Pereira, Sandra Costa, Sandra Silva Inês Leitão, Sara Canelhas, Sérgio
Almeida Correia, Sérgio Grilo, Sílvia Agostinho, Sílvia Alves, Sónia Pereira, Tânia
Ganho, Teatro Ensaio, Telma Ferreira, Teolinda Gersão, , Teresa Correia, Teresa
Machado, Teresinha Pina, Tiago Rebelo, Tiago V. Moita, Vasco Medeiros Rosa, Vasco
Pimentel, Vítor Alves, Zilda Cardoso.
A manhã de todos os dias
Polícia, psicólogo, padre confessor, nenhum saberá dizer que homem ali vai. Camaleão das almas que teve e das aparências que se inventou, há muito descobriu que segura menos firme a rédea, e o seu Pégaso não voa para onde ele manda.
Chega ao café, olha em redor, e mesmo se
não há gente tira o chapéu numa vénia antiga, caminha direito à "sua"
mesa, perto da janela.
Espera, mas nada acontece. Chegará um ou
outro que, distraído, perguntará "como vão esses ossos?", intróito de
conversas que não são conversas, de
recordações feitas de aparências, enganos e desencontros.
Quando na torre bater a uma, dirá que
"vão sendo horas", levanta-se, repuxa as calças, apoia-se à bengala e, com
a sem-pressa da velhice, desce a rua, entra no restaurante, pergunta desinteressado o que é o "prato
do dia".
domingo, dezembro 9
Diferenças
Geou forte. Aqui em volta apontam tufos de verde, as árvores perderam a seiva, o resto é brancura, frio, desconforto.
Saíram num escuro de noite, o relógio da
igreja a dar as seis. Varas ao ombro, silenciosos como sombras, um já de
oitenta, aos outros dois faltará um ano, vão repetir o trabalho que fazem desde
criança: varejar a azeitona, apanhá-la nas lonas, guardá-la nos sacos que
irão para o lagar. Ora de pé, braços ao
alto, agitando as varas, ora curvados na apanha, esquecidos da dor e do cansaço.
Pelas encostas não se ouve uma fala, um
grito, um chamamento. Há ali uma solenidade e um recato de missa, o modo grave
do ritual atávico de semear, cuidar, colher e guardar para as horas de
precisão.
Vi-os passar, encolhidos, pressentindo o
gelo que vai abrir gretas nas mãos, entorpecer os pés, endurar os ossos. Vi-os
passar, sem pena nem sentimento de culpa do meu conforto, mas invejoso dos que, sem se interrogar, seguem
decididos um ritual e têm um propósito.
Já eles trabalhavam há mais de duas horas
quando o sol começou a derreter a geada, e eu, desolado com a inutilidade da
minha manhã e do que penso, me fui a ouvir Brahms.
sábado, dezembro 8
Fado
Imagino. No quarto de banho, depois do que
no falar antigo se chamava "as abluções", você enfrentou o espelho,
encheu-se de vento, retesou os peitorais, está pronto para o dia.
Se é mulher, creio que se pôs de perfil,
avaliou a linha, achou que está bem, que ainda está bem, e sai dali com um
sorriso.
Aceitação e confiança, são essas as boas
atitudes, e ainda a crença de que, por muito que filósofos, cientistas e
sacerdotes repisem o contrário, a razão está do lado da saudosa D. Amália
Rodrigues: ninguém escapa ao seu fado.
O busílis reside em manter o tom, trinar na
boa altura, e ter força para o que muitos não conseguem: cantar a solo.
sexta-feira, dezembro 7
Descida
Desci esta madrugada a um inferno de
recordações e, quando escapei dele, ocorreu-me como seria bom que houvesse para
a alma o equivalente do hammam, o
banho turco, onde com lavagens e massagens se renova a pele, abrem os poros e
tonifica a musculatura.
Seria bom, mas não há. Nem sei de maneira
que, nessas ocasiões, trave o diabinho cuja função é destapar a panela onde
fervem as lembranças que nos afligem. E quanto mais desejamos que o suplício
pare, mais ele sopra, avivando os maus momentos com a diligência de quem
acarreta achas para a fogueira.
Nessa disposição me encontro,
perguntando-me se não haverá maneira de deitar a outrem a culpa das minhas aflições.
Suponho que não há. Pior: com o andar dos anos aprendi que a culpa é sempre
minha, só minha, e cada vez que tento sacudir a água do capote ou choro
lágrimas de inocência, o diabinho chama o chefe, com as tenazes grandes e o
tridente afiado.
Céu cinzento, morrinha, nevoeiro, maus
pensamentos, ressaca da vida. E porque nada se vê, dou os bons-dias, sorrio a
quem passa, estou bem, obrigado, cuidado com a porta, veja se tem troco, isto
está de chuva, tira daí o gato, o padeiro demora, o enterro é às cinco.