Tanta acusação, tanto insulto, tanta bruteza e ódio, inveja, falta de cabeça. Vistas curtas. Desprezo do semelhante. Tanta ilusão, vaidade, bacoquice. E aparências, sempre as aparências a tapar o desespero.
Oito décadas já fiz, passadas em dois séculos, e nunca o meu povo vi assim. Até à revolução consegui sonhar, tive esperança. Depois, a contragosto, tentei convencer-me de que o meu pessimismo era miopia. Então não tinham os pais da Zeferina, que trabalham nas limpezas, gasto sessenta mil euros no casamento da rapariga? Teria eu inveja do Mercedes do Abel? Cegava-me a alegria com que o João fora às Seychelles, e a Beatriz, aos fins-de-semana, voava Europa fora no sério intento de visitar todas as capitais? Que birra era essa de não querer ver?
O negrume, contudo, nunca parou de crescer em mim. E agora que o edifício lentamente desmorona, e ninguém sabe como serão as ruínas, ou se alguma obra se poderá fazer com elas, balanço eu entre os sentimentos contraditórios da pena e da raiva, de me querer longe e sentir preso. Esbarrando sempre contra o mesmo muro. Pobreza? Tontice? Inconsciência? Desleixo? Assim será, mas esta é a minha pátria, esta é a minha gente.