Obrigo-me, vou manhã cedo pelo monte a fingir que me convenço da precisão de exercício, mas mal a aldeia desaparece na volta do caminho, perco-me no longe da serrania, extravio nos pensamentos. Outra encosta e esqueço a paisagem, levantam-se os fantasmas do meu passado.
Mulheres de xaile, só o rosto à mostra, silenciosas, cardando lã, fiando linho. Homens enjeridos, curvados, gastando o dobro da força com enxadas de mau corte num chão de pedra e escassa terra. Calças de burel, puídas, remendadas. Botas velhas com solas de pneu. Fumo branco dos toros que ardem lentamente numa cova. Ajoelhado, o velho sopra de vez em quando, abana com o chapéu, cauteloso para que as chamas só queimem o preciso e façam carvão. Paciente, cuidadoso, se encher duas sacas e conseguir vender ambas terá ganho o dia. Uma mão na rabiça do arado, a outra a segurar a vara com que lhes bate, o homem berra, quer sulcos direitos, mas a mula e a burra, desiguais na força, fazem má parelha. Um vulto desaparece sob a carga do feixe de estevas para o forno. A aragem traz o chio longínquo dum carro de bois.
Confundem-se-me os anos e as estações, sobrepõem-se os rostos, as idades, os parentescos. Não distingo os que partiram dos que estão no cemitério, ora os vejo miúdos ranhosos a saltar nas medas de palha, ora me surgem desdentados, lacrimosos, o corpo torto da idade e do mau trato.
Caminho sem pressa, despegado do mundo. Os fantasmas fazem boa companhia. Sou mais eu entre eles do que quando daqui a instantes, descida a encosta e feita a vénia à igreja, voltar à realidade.