Pode ser falha do cérebro, desarranjo no que se chama o espírito, ligação defeituosa entre a aparelhagem que condiciona as emoções. Também, e mais simplesmente, pode ser a incapacidade de quem não aprendeu, certo é que desde há tempos ando às voltas com a relação que tenho com a Música.
Comecei cedo. Com boa voz e ouvido apurado. Teria oito anos, e os dedos mal davam para o braço da guitarra, mas conseguia tocar o fado em ré menor. Mudei depois para o que nesse tempo se chamava violão, fui tenor num quarteto, descobri Beethoven, Chopin, Mozart, o tango e o pasodoble no rádio que, inesperadamente, alegrou o dia dos meus quinze anos.
A Música muitas vezes me tem comovido, a memória de algumas vozes continua a surpreender-me pela beleza, tão facilmente me deixo arrastar por Louis Armstrong como por Aznavour, Billie Holiday, Maria Callas ou Fischer-Dieskau.
Em abono da verdade, porém, devo mudar o verbo para o pretérito imperfeito. É que hoje em dia a música, toda a música, se me apresenta diferente, com forças inexplicáveis. Já não me arrasta nem embala, antes atemoriza. Em imensuráveis fracções de tempo deixa entrever fundos que me escapam, assinala cruelmente os limites do meu entendimento, e como é tosco o poder que tenho de sentir.
Continuo a ouvir música, mas sem a ingenuidade de antigamente. Ela permanece sobrenatural, assustadora nos seus mistérios. Eu descubro-me ínfimo, surpreso de que houve tempo em que julguei que o meu cantar também era Música.