Theo van Gogh (1957-2004) tinha um riso de criança. De criança ingénua e maliciosa. E um ar pretensamente bonachão, acentuado pelo seu modo de vestir, os suspensórios, o cigarro a pender dos lábios, o modo perplexo de quem não reconhece o lugar onde está, nem compreende bem as razões que o interlocutor invoca para discordar do seu ponto de vista.
Como todos nós era actor, mas melhor e de sensibilidade mais aguda que a maioria. Quando comecei a ler os seus artigos rendi-me de imediato à ironia e ao veneno que debitava sobre as figuras públicas. O rapaz, disse comigo, tem qualidades para ir longe, pouco importa em que campo. No cinema, no jornalismo, na política E tanto pelos seus múltiplos talentos, como pela rebeldia e o desdém que demonstrava pelo comodismo das ideias, das situações, das instituições, incluí-o na lista dos intelectuais que me mereciam apreço.
Ainda lá o mantenho. E confesso que, sem pessoalmente o conhecer, me despertou simpatia. Da única vez em que por acaso nos encontrámos no mesmo café, estive vai não vai para lhe falar, mas a minha reticência prevaleceu, a ocasião perdeu-se.
Talvez tenha sido melhor assim. Do meu ponto de vista, por razões que podem ter sido pessoais, sociais, políticas, ou idiossincrasias do carácter, tanto nos seus escritos como nas actuações na televisão, a partir de determinada altura Theo van Gogh como que descarrilou. Não somente a sua grosseria tinha ultrapassado há muito o aceitável, como parecia tornar-se uma desmesuradamente ampliada caricatura de si próprio.
A impressão que me dava era como que a de ter explodido em várias raivas e antipatias, tudo isso marcado pelo excesso do tom e a acerbidade das afirmações e comparações.
Em questões de crítica a sociedade holandesa possui uma notável capacidade de encaixe. Quem a não conhece dificilmente acreditará na rudeza que nela é corrente, como também estranhará que se possa chegar a tais extremos e depois, em vez de sacar navalhas, ir pacífica e civilizadamente tomar café.
Mas mesmo em tão razoável ambiente, e não obstante tudo o que sobre ela se possa dizer de bem, uma personalidade extrema como a de Theo van Gogh depressa atrai mais ódios que aderentes.
Cito de cor, porque a li há muito, uma passagem num thriller de Trevanian, na qual um personagem explica que um dos erros graves dos praticantes de judo, artes marciais e semelhantes, é pressupor que o adversário seguirá as regras do jogo. A probabilidade é grande que tal aconteça numa sala de ginásio, mas nula na luta travada numa viela . Enquanto um se ocupa com os ademanes e a coreografia dos saltos, o adversário pega em pau ou pedra e acaba por vencer.
É especulação, mas quanto a mim, e em mais de um aspecto, Theo van Gogh calculou mal, ou não se deu conta do desenvolvimento da sociedade em que se encontrava. Mostrava também aquela falta de tacto e ponta de arrogância que ao longo dos anos tantas vezes tenho ouvido: isto é a Holanda, aqui faz-se assim, é-se assim. O que implicitamente implica: aquele que não compreende ou não aceita, que se lixe. Só que, fazer em Roma comos os romanos fazem, é um tanto diferente de, queira-se ou não, ser forçado a fazer como eles.
A meu ver, a Holanda em que ele imaginava funcionar deixara de existir. Na da realidade não havia lugar para o seu tipo de ludismo, e o jogral só era bem aceite na medida em que não brincava com o fogo, temperava as setas, e cautelosamente escolhia alvos inócuos: a família, o amor, o sexo, a religiosidade caduca.
Além disso, não se espera do jogral que se sente à mesa. Entretém e, terminado o acto, retira-se discretamente. Infelizmente, a discreção não fazia parte da bagagem de Theo van Gogh. Para si próprio exigia todos os papéis de relevo e a atenção inteira, indivisa. Aos amigos e ao público, à nação, à Europa, e mais tarde, quem sabe - o egocentrismo provoca dessas miragens - ao mundo inteiro, cabia apenas aprovar, admirar, aplaudir.
Se é atitude psicológica normal na chamada segunda infância, entre os três e os seis anos, do adulto em seu juízo, ou pelo menos relativamente equilibrado, espera-se que mantenha o egocentrismo dentro dos limites das conveniências. Ignorar as susceptibilidades alheias ou, mais grave ainda, desdenhar delas sem peso nem medida, é ir de olhos fechados direito ao desastre.
Nenhum argumento pode justificar o seu assassinato. Tão-pouco importa que o assassino seja um fanático, um psicopata, ou também ele um egocêntrico em busca de atenção e fama. E porque o choque foi enorme, fazendo temer que se iniciasse um período de violência e terror, é compreensível que se tenha então largamente discutido o avanço do Islão, e o terrorismo, a imigração ilegal, as más condições dos bairros pobres, a ameaça que tudo isso é para uma sociedade que se quer de paz e harmonia.
Mas nem o sacrifício do assassinado, nem as promessa que em semelhantes ocasiões a política sempre faz de que serão tomadas medidas, e que os problemas vão ser resolvidos com urgência, resultou em visíveis mudanças.
Fiel a uma longa tradição de esperar para ver no que param as coisas, a Holanda e os seus governantes continuam à espera. E eu com eles.
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In A Ira de Deus sobre a Holanda (2008), inédito em português.